domingo, 29 de maio de 2016

Lapa: onde o desejo mora ao lado


 


Arcos da Lapa por Jorge Costa - Intervenção de Brian Eno (2012)


Foi em uma praia conhecida como “Areias de Espanha” que, em 1751, ao redor de um seminário e de uma capela em louvor de Nossa Senhora, teve origem o bairro da Lapa. A demarcação na geografia da cidade de uma área que simbolizou o “Rio Noturno” - em alusão aos áureos tempos da boemia carioca - permitiu que fosse estabelecido um espaço onde a questão da pulsão do sujeito engendrou estilos de vida dos mais transgressores. Os personagens noturnos da Lapa produziram uma cultura própria que ainda povoa o imaginário da sociedade carioca.

A caracterização do bairro como ponto oficial da malandragem, da boemia e do prazer explícito se deu por volta de 1920, com a presença de algumas das figuras mais brilhantes e expressivas do modernismo brasileiro - Villa Lobos, Manuel Bandeira, Di Cavalcanti, Sergio Buarque de Hollanda, entre outros artistas e intelectuais. Este grupo foi quem descobriu a Lapa e lançou a legenda romântica de uma “Pigalle, Montmartre ou Montparnasse” dos trópicos. O modernismo aparece como um movimento que buscou a expressão do nacionalismo e do individualismo, e a produção de uma arte nacional a partir de uma pesquisa apurada sobre nossas raízes culturais. 

A fabricação do conteúdo e da forma do bairro foi realizada através de um fazer de escritores, sambistas, mulheres famosas e valentões. O que caracteriza um espaço é a nomeação e a comunicação de seus personagens, que irão identificar e simbolizar um determinado território. A invenção de um espaço se dá a partir do sujeito, do espírito humano que dá sentido e forma a uma configuração espacial.

Na realidade, o bairro é uma área que sofreu mudanças significativas no tocante à sua apropriação. Até fins do século XIX, a Lapa era um bairro estritamente familiar, ocupado pela elite imperial, sendo uma área com características da ordem do privado, pois os laços afetivos que se estabeleciam representavam um universo tradicional da sociedade, onde a pulsão do sujeito se dava na casa - a intimidade do lar.

Em outro momento, por volta de 1910, a Lapa apresentava dupla personalidade: residências familiares e “pensões suspeitas”. Observamos, também, o início do uso do bairro como área de grande importância no cenário político nacional, como diz Gasparino Damata: “O destino da Nação palpitava no coração da Lapa”. Os hotéis eram lugares onde ocorriam grandes conspirações políticas, palcos do nascimento de estratégias que iriam tirar ou levar ao poder figuras de nossa história. 

A Sala Cecília Meireles, que, originalmente, foi o Grande Hotel da Lapa e, depois, o Cinema Colonial, ainda nos remete a um tempo de intrigas e desejos desenfreados de poder. As notas musicais emitidas harmonizam o imaginário da sociedade, oferecendo uma nova técnica para ser usufruída pelo sujeito. O espaço é um elemento da ordem da invenção, visto que sua sobrevivência se deu através da sustentação em um processo de reinvenção contínua, atento às mudanças socioculturais da região onde estava inserido. A Sala Cecília Meireles faz parte da tríade simbólica da Lapa, estrutura que mantém viva a memória do bairro, contribuindo para uma investida permanente em seu imaginário.

Os Arcos da Lapa, eixo que corta a região coronariana do bairro, a linha de pulsação dos sentimentos (o aqueduto - o elemento água), o limite de comunicação (circulação) de experiências que liga a região cerebral da cidade (o centro do Rio) a uma região do sublime (Santa Teresa) - área do pensar, da arte e do religar-se ao todo, aparecem como elementos representantes da técnica na tríade simbólica. Podemos dizer que os Arcos são a presença mais viva do espírito da técnica na cidade, onde o caráter técnico foi elevado ao patamar de obra de arte, havendo a transformação do conteúdo de um objeto de natureza estritamente racional (técnica) em um símbolo da contemplação e da modulação do infinito.

Por fim, a Igreja de Nossa Senhora da Lapa ou Desterro da Lapa exerce o papel de elemento da ordem da pulsão, do desejo religioso de levar a fé pelos labirintos da região. Como marco de fundação do bairro, a igreja é uma referência permanente no imaginário local, promovendo articulações com as produções sociais e culturais ocorridas ao longo do tempo. Luís Martins comenta: “Basta dizer que a Lapa é um centro de meretrício todo especial, onde vivem as mulatas mais sofisticadas do Rio, e esse meretrício se exerce no ambiente místico da velha igreja e convento dos fransciscanos. A igreja não é bela e não tem exteriormente nada que desperte a atenção artística. No entanto, nenhuma outra no Rio terá a sua influência de sugestão religiosa”. Percebemos, então, que o elemento-pulsão da tríade simbólica exerce uma influência na padronização de comportamentos que irão se estabelecer no bairro. O sentimento religioso, no sentido de alguém que faz votos a alguma coisa, traduz o perfil dos personagens característicos da Lapa. As prostitutas, os malandros e os boêmios são figuras que fazem votos ao sexo (prazer), à preguiça, à patifaria, à bebida e à conversa fiada.

O bairro sustenta-se ao longo da história da cidade em personagens e rituais eternizados por uma superestrutura (pulsão, invenção e técnica) da ordem do simbólico. O espaço da Lapa é demarcado a partir de um padrão religioso, com a impregnação no imaginário social de sujeitos e objetos que realmente representam a verdadeira natureza da forma e da função do bairro.

A imagem-símbolo da Lapa, no entanto, constitui-se a partir de 1915, com a expansão pelas ruas adjacentes das “casas suspeitas”. A Nova Lapa é o lugar de crimes passionais, de boemia desenfreada, de malandragem, de sambistas, das grandes mulheres e dos desordeiros perigosos. O bairro é conhecido como o local dos cabarés e cassinos famosos. O prazer, nesse período histórico, é oficializado e assimilado pela sociedade, configurando-se em um tipo exótico de sacerdócio - o do prazer e do jogo - de uma vida noturna dissoluta. O caráter público do bairro é preponderante sob a ótica privada, caracterizando o espaço como um universo destituído de limites e pudor, onde o prazer assola sua geografia e destitui qualquer tipo de controle e tradição. O poder já não é mais da ordem da privação, mas, sim, da depravação, do esgarçamento dos canais de produção do prazer. Hernani de Iraja diz que “A Lapa tornava-se um mostruário do mundo, com seus vícios, pecados e paixões, com suas virtudes, encantos e amores, vitrine de atrações, ligações efêmeras, ciúmes e juras de balcão de chope e promessas irrealizáveis em cinco minutos de cama”. O lado dito sombrio é “elevado” à condição de um universo real da experiência humana, e sua dramatização sugere a possibilidade de um significado, uma referência para a reflexão e criatividade.

Os personagens: a fé e o pecado nas ruas   

O solo da epistemologia urbana da Lapa passa obrigatoriamente pelo estudo de seus personagens, dos perfis humanos que fizeram a história do bairro. Cada um deles representa uma faceta da lógica do funcionamento da região. O corpo e o pensamento promovem no espaço uma cultura própria que poderá identificar uma determinada cartografia. Os personagens aparecem nos mapas urbanos como signos representativos de estilos de vida, de uma forma de ver e intervir no mundo.

A libertinagem tinha morada própria; era preciso um clima de sedução com luzes especiais - vermelhas - e camas disponíveis. A ambientação dos bordéis refletia, na realidade, a sociedade onde eles funcionavam. A configuração do espaço se dava a partir de uma especialização das diversas etapas do produto (o ato sexual) a ser oferecido. O ato sexual, enquanto objeto comercializável, demandava uma rotina de práticas pertinentes a um determinado espaço. Dessa forma, o bordel aparece como uma fábrica de prazeres, sistematizado em formas (os diversos espaços da unidade fabril) e conteúdos (a cultura do bordel - linguagem, conhecimento, moda, tipos de prazer e a qualidade do ato sexual).

O espaço de prostituição é um mercado onde são realizadas negociações que objetivam a construção da ordem social, a superação do conflito entre as normas sociais estabelecidas e a sexualidade organizada. Essas negociações levam em conta preços, práticas e tempo, que dimensionam o “programa” a ser realizado pelas partes.

A função social da prostituta se configura a partir de um preenchimento de um vazio sexual e/ou afetivo: “O papel da prostituta supõe, desta maneira, a prestação de serviços a que os homens não têm acesso no âmbito da casa”, comenta Renan Springer Freitas. A prática sexual, assim, sai do âmbito privado (a casa) e vai para o âmbito público (o bordel), onde passa a sofrer um tratamento sob a ótica do mercado. A satisfação do desejo sexual é alcançada a partir da sacralização do mercado paralelo do prazer, onde o trabalho da prostituta se constitui em um serviço de utilidade pública.

A maioria das casas de mulheres era de procedência francesa. As polonesas - as polacas - aparecem também no bairro trazidas pela cafetina Suzana Casterat que implementou uma rede internacional de importação de escravas brancas com vistas à prostituição, denominada de “Migdal”. Alice Cavalo de Pau deu continuidade ao trabalho da mestra Suzana, contribuindo para o desenvolvimento da profissão mais antiga do mundo no Rio de Janeiro. Sua origem há 3.000 anos aparece sob a forma de uma obrigação religiosa, sendo, com o decorrer do tempo, profanada.

Na Lapa apareciam mulheres por todos os cantos, dentro e fora de seus quartéis. O elemento fêmea se ressaltava perante os demais tipos humanos; elas eram exuberantes e algumas vezes cultas. Chouchou, francesa, leitora de Colette e assinante da Nouvelle Revue Française, aparecia como uma mulher disputada não só pelo seu corpo, mas, também, pela sua cultura. Muitos homens a procuravam para ter o desfrute de seu sexo e de uma boa conversa. Transar com Chouchou significava gozar com o corpo e com a mente. Outra prostituta famosa foi Frida Mitchell que foi citada em inúmeros livros, peças e novelas.

As prostitutas naquela época eram, de fato, artigos de luxo, disputadas não só por homens comuns, mas por políticos, artistas e intelectuais. Cafetinas como Tina Bonalis, Suzana Casterat, Tina Tatti, entre outras, ficaram na história do bairro como grandes mulheres agenciadoras do prazer.

Percebemos a aproximação do caráter sagrado e profano na Lapa nas décadas de 20 a 40, quando as prostitutas polonesas e francesas iam até a Igreja de Nossa Senhora da Lapa pedir perdão por seus pecados. O elemento simbólico de natureza religiosa do bairro recebe em seu território mulheres que irão abdicar temporariamente de sua vida profana. O alimento espiritual aparece como fonte de purificação dos corpos, de um apagamento do passado sexual, mas que encontra, no futuro próximo, um desejo e uma necessidade irresistíveis.

Um personagem de grande nome na época foi Madame Satã: toxicômano, homossexual notório e valente. Ele brigava e ia até as últimas conseqüências pelo que queria, seja por seus amores ou por fazer valer sua opinião. Foi ator de teatro, compositor, personalidade conhecida não só no bairro mas, também, na cidade; o primeiro travesti-artista do Brasil conhecido como “Mulata do Balacochê”, famoso na região da Praça Tiradentes, por volta de 1928, centro da vida teatral do Rio de Janeiro. O apelido “Madame Satã” apareceu em 1938, depois que ele se fantasiou de diabo no carnaval. 

Madame Satã era respeitado, temperamental e figura de influência em diversos meios sociais. Na hierarquia da malandragem carioca, visto que cada área da cidade tinha um malandro responsável, Madame Satã dava cobertura ao bairro da Lapa, sendo um gerente da ordem e da desordem das pulsões humanas. A referência à sua presença ou ao seu nome era o suficiente para evitar brigas, afastar desordeiros e inibir adversários. Na época, ele vendia jornais, tanto quanto hoje vendem as estrelas de cinema e os astros do esporte.

Segundo alguns autores, era, na realidade, um justiceiro, que subverteu o estereótipo do homossexual frágil e delicado. Em sua vida de malandro, respondeu a vinte e seis processos, sendo condenado em dez, passando cerca de vinte e oito anos na prisão. Apesar de seu temperamento forte, foi um preso exemplar, exercendo a função de cozinheiro de fama na prisão.

A questão da inventividade é notória no território da Lapa. A invenção não era só do prazer e do pensamento, mas de inventos que surgiram no bairro. Um lugar de personagens de intensa pulsão permite que haja uma produção rica em criatividade e que seja, de fato, representativa do meio cultural, alvo de provocação pelos sujeitos desejosos. 

 Os irmãos Meira foram os introdutores no Rio do célebre jogo da chapinha, expediente da malandragem. Os malandros, além do jeito, do linguajar, da roupa e dos hábitos, tinham seu jogo característico, uma forma típica de se entreter. O jogo da chapinha era uma técnica de extensão do corpo do malandro, utilizando a ginga das mãos e o manejo dos olhos. O malandro era o prestidigitador de expedientes fáceis.

A figura do malandro aparece durante a década de 20 nos morros e no centro da cidade. Muitos deles eram ex-escravos e a opção pela vida da malandragem ocorreu pela falta de um trabalho que não se enquadrasse nos padrões de miserabilidade social. No final do Império, já se podia perceber a origem dessa classe através da prática da capoeira.

As características principais do malandro eram: a valentia sem violência, muita elegância e estilo, e sempre uma vida boa e, como diz Moreira da Silva: “Malandro é aquele que não pega no pesado. Malandro é o gato que come peixe sem ir na praia”. Geralmente eram jogadores, vigaristas, cafetões, valentes, sambistas e, também, aqueles que tinham um emprego público e viviam na “maré mansa”. 

O visual do malandro era composto pelo chapéu de panamá (instrumento de percussão ou elemento que confundia o adversário em uma briga); a camisa de seda -palha com botões brilhantes (tecido que impossibilitava o corte da navalha); gravata de tussot branco; calças almofadinha (com uma navalha no bolso); chinelo cara-de-gato ou tamanco; e os dedos cheios de anéis. Nos anos 40, devido à perseguição de Getúlio Vargas - período do Estado Novo -, que cultuava o trabalho e a produção, os malandros se tornaram mais discretos visualmente, passando a usar o terno de linho branco com calça “boca de choro” (estreita), chapéu de panamá e sapato de duas cores ou do tipo carrapeta (salto mexicano).

A voz da malandragem, na realidade, foi a classe de sambistas do morro, que viveu na década de 30, época de ouro da música popular brasileira, onde o malandro foi rei e admirado pela comunidade. O tipo de samba que teve origem na malandragem e foi desenvolvido por ela aparece como uma fase de resistência a um segmento social preto, pobre e proletário, contrário aos valores impostos pela classe hegemônica.

Os malandros distribuíram o espaço da cidade entre si, por bairros. Cada bairro tinha um representante que era responsável pela ordem local, tais como: Praça Onze - Saturnino; Saúde e a zona de estiva - Gavião Branco e Gavião Preto; Mangue - Índio da Carmem e Tinguá; Lapa - Madame Satã; e Praça Mauá - Henrique Finfim. O malandro tinha importância sociocultural, sendo um elemento da manutenção da ordem e da promoção do prazer. Na década de 50, a maioria dos malandros de nome já estava presa ou morta. O povo não tinha mais a representatividade da boa vida oficial, a voz da vida fácil calou-se e o gato agora precisa ir à praia para comer peixe.

Os personagens da Lapa foram as figuras freqüentadoras dos bares (Siri, Café Colosso, Capela, Café Bahia e o Imperial); cabarés (Apolo, Royal Pigalle, Vienna Budapest, Novo México, Casanova e o Cú da Mãe); cassinos (High Life); prostíbulos; e ruas. Neste cenário, as pessoas aprendiam e desenvolviam suas técnicas, relacionavam-se entre si e com os que vinham de fora, enfim, exerciam sua sociabilidade. Uma cultura própria foi produzida e deixada de herança para as gerações posteriores. 

A importância desses espaços, enquanto locais da vanguarda sociocultural, aparece representada por um bar na esquina da Rua da Lapa com Rua da Glória, onde foi composto o primeiro samba gravado da história - a música “Pelo Telefone”, de 1917. O local foi freqüentado por artistas como Sinhô, Pixinguinha, Mário Reis, entre outros. O samba, de autoria de Donga e Mauro de Almeida, teve como fonte de inspiração a repressão ao jogo de azar. A obra retrata em verso e melodia a questão da corrupção da polícia e da popularidade do jogo e transformou-se em um grande sucesso durante vários carnavais.

Esses espaços de prazer explícito - terra de pura orgia - foram locais onde o modernismo do Rio de Janeiro se desenvolveu, lançando obras e figuras que entraram para a história cultural carioca e brasileira.

Depois da época do apogeu da Lapa - 1930 a 1938 -, o bairro entrou em decadência. Nos anos 40, Getúlio Vargas mandou fechar os prostíbulos, reprimindo, assim, um serviço de utilidade pública. Depois desse período, a Lapa só viveu uma noite de esplendor, relembrando a Lapa dos tempos áureos, quando foi comemorado, em 1945, o fim da grande guerra mundial. A década de 40 marca a mudança da vida noturna carioca para a zona sul, mais especificamente, para Copacabana - uma boemia mais familiar e ligada à classe média. O espaço da cidade se redimensiona com a expansão da vida social para novos bairros, não apagando de nossa memória coletiva, entretanto, todo o esplendor, criatividade e desregramento social que marcaram o bairro da Lapa.

O desejo ainda mora ao lado ...

 

domingo, 22 de maio de 2016

O céu vibra no infinito: É Tom, é Jobim: é a promessa de música no teu cora...

O céu vibra no infinito: É Tom, é Jobim: é a promessa de música no teu cora...: Tom Jobim por Otto Stupakoff (Acervo IMS) “Há um grande perigo no sujeito que acredita em ideias”, dizia Tom Jobim. Há um grande ...

É Tom, é Jobim: é a promessa de música no teu coração




Tom Jobim por Otto Stupakoff (Acervo IMS)

“Há um grande perigo no sujeito que acredita em ideias”, dizia Tom Jobim. Há um grande perigo no sujeito que apura a escuta em busca da criação de harmonias. Tanto as ideias quanto as harmonias podem mudar o rumo das águas das estações e o destino das músicas que vamos ouvir ao longo da vida.

Qual seria o lugar de criação de um artista influenciado por Debussy, Stravinsky, Ravel, George Gershwin, Cole Porter, Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Custódio Mesquita e Dorival Caymmi? Esse homem voltou-se para si nas areias cantantes de Ipanema, nos caminhos da natureza do Jardim Botânico (o quintal da casa de Jobim), no silêncio inspirador de Poço Fundo (retiro da família) e nas possibilidades estrangeiras e artísticas inovadoras de Nova Iorque. Tom dizia que a cidade “era uma fazenda, mas ficava contente quando alguém o reconhecia”. Lugares onde ele desbravou o imaginário (a genialidade) de si no outro, nas paisagens de nossos imaginários e nas criações de canções de câmara, fundo musical de filmes, música sinfônica, samba-canção, choro e até bossa-nova. Um acervo conquistado pelo exercício da técnica, pelas parcerias e pela contemplação do mundo que o levaram a uma sublimação do conceito de boa música.

O artista Jobim no ser humano Tom-Tom (como era chamado por sua irmã Helena) representa a comunhão de dois lugares de um mesmo personagem genial. A obra e a vida de Tom são contaminadas por uma fantasia da ordem da desprivatização, um conceito apresentado por Norbert Elias em seu estudo sobre o gênio criativo Mozart. Todo o sentido da arte jobiniana é imbuído da busca de algo que está além de si próprio: a harmonia musical, o sentido da natureza, a beleza contida nos meandros da vida de todos nós.

Essa desprivatização, que também pode ser denominada de sublimação, é a busca da fantasia na relação com seu material de afeto (a música), em uma dimensão na qual haja a comunhão entre o artista, o objeto e a sociedade, um encontro de consciências de intensa ressonância no mundo. Na visão de Elias, “(...) o artista avança por um caminho pelo qual nunca passou antes, e, no caso do grande mestre, pelo qual nunca ninguém passou. Os criadores de arte fazem experiências. Testam suas fantasias no material, no material de sua fantasia que está sempre assumindo novas formas”. A música que ressoa pelo mundo de Tom é a música que ressoa no acervo sonoro de todas as tribos. Tudo aquilo que revoluciona, que pretende ser moderno, com o passar do tempo se torna clássico. E olha que o clássico não para de se tornar moderno.


A invenção de Tom nas harmonias do Brasil


O carioca Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim teve dois nascimentos: o primeiro, na Tijuca; e o segundo, depois de um ano, com a mudança da família, em Ipanema. Jobim percorre o apuro estético da música clássica e da canção americana e lança uma arte musical que promove o refinamento dos sentidos e emoções da alma do homem e da natureza. 

A música de Jobim reflete a delicadeza e as formas harmônicas da paisagem natural. Ela dá voz ao silêncio das nobres epidermes da natureza e seduz os seres cantantes a entoar canções. A música jobiniana reflete o afeto e o sentido da paisagem humana. O cotidiano e a mulher vivem seus momentos de glória. Jacques Morelenbaum descreve assim o temperamento de Tom: “Era um intelectual que gostava de ir para a banca de jornal da Farmácia Piauí, no Leblon, bater papo com o jornaleiro. Isso traduz a música dele. Toda a sofisticação harmônica e, ao mesmo tempo, a melodia de um cara do povo”. Essas são visões de um paraíso possível, alimentadas por doses de uísque com Sérgio Buarque de Holanda e pelas sugestões do Carmelo de comprar uma favela, paraíso materializado em música esculpida. Jobim tornou-se um clássico das harmonias visitadas. 

Tom nunca comprou uma favela, mas, em 1956, convidado por Vinícius de Moraes, criou as músicas da peça Orfeu da Conceição, ambientada numa favela do Rio de Janeiro e apresentada no Teatro Municipal, com cenários do arquiteto Oscar Niemeyer. Aposto que Carmelo nem sabia disso. Niemeyer quis entrar nessa empreitada de gênios e testar suas míticas curvas ao som de canções que celebravam o amor e a beleza das mulheres. Na realidade, pouca mulher para muito desejo de nossos artistas. Tom também criou uns acordezinhos na arquitetura, mas a arte da música ganhou mais com suas composições espaciais: sonoridades que deflagram o espaço e o tempo de uma época. 

O mito grego de Orfeu e Eurídice é revisitado pelos sambas de Tom e Vinicius durante um carnaval carioca repleto de harmonias e descompassos amorosos. Mais tarde a peça virou filme, Orfeu negro, sob a direção de Marcel Camus, e ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro em Cannes. Tom não para de compor para cinema: suas músicas são verdadeiras sinfonias de imagens cantantes. Foi até chamado por Glauber Rocha para fazer o papel de Paulo, o poeta do filme Terra em transe. Acabou não virando galã de cinema. As sinfonias de Tom são as sinfonias das cidades, das mulheres e da natureza que emanam do Rio de Janeiro. 

O refinamento da harmonia vem desde os 13 anos, com a chegada de um velho piano ao qual se entregou em experimentos e estudos; antes disso, arrumou uma gaita de boca. O piano acompanhou e formou um artista obsessivo, imbuído de invenção, mas embasado em técnica musical associada à consciência de artista e de homem de seu tempo. Aliás, os pianos eram fartos como os charutos, ou menos fartos: dois pianos de armário e dois de cauda, sendo um da marca Yamaha e o outro Steinway.

Hans-Joachim Koellreutter (introdutor da música dodecafônica no Brasil), Lucia Branco, Tomás Tehran e Paulo Silva foram os encorajadores de Tom em sua autoanálise estética, na qual tentava harmonizar o mundo por meio de obras musicais que não se transformaram em utopia. A música seguia o que já se apresentava em estado harmônico, rebatendo a harmonia da natureza e de seus reflexos no contexto social. E isso se traduz nas palavras de Elizabeth Jobim: “Com aquele jeito de observar a natureza, a paisagem, a cor de uma borboleta, ele falava também sobre as cores dos acordes”. O som do lugar constitui material sensível das partituras do maestro impressionista. Impressões da peroba do campo, do nó da madeira. 

A sensibilidade aguçada desde menino induziu-o a um estado de quietude profunda nos caminhos de meditações para além das matas. Jobim tinha que ficar um pouco sozinho: “Porque eu, quando era garoto, gostava de subir numa árvore e ficar quieto lá em cima. Gostava de subir no telhado (...). Tinha um pouco de um caráter meditativo”. O encontro com a música trouxe a vivência nas árvores e nos telhados da imaginação para a experiência com a composição: melodia, uma meditação sobre a flutuação dos acordes. Uma sinfonia de percepções acerca da formação da sonoridade dos lugares. Jobim precisava se defrontar com a infinitude do tempo presente e desenhar partituras de um som ainda não audível, de palavras ainda não ditas.

O sentido da escuta faz parte da visão criativa de Tom. Ele dizia que “todo compositor compõe de ouvido, a música é uma arte do ouvido, não uma arte visual”, mesmo que suas canções (sonoridades) sejam impregnadas de paisagens da memória ou paisagens sugeridas: a criação de imagens brasileiras, um cinema sonoro que vemos e ouvimos ao nosso redor.

A precisão econômica da dosagem musical (o mínimo) em prol do máximo de emoção faz de suas músicas exemplos de uma arte condutora dos estados de espírito do homem pelos caminhos da inspiração. O silêncio, enquanto intervalo para uma escuta de sons profundos e elemento de criação, é uma conquista do artista e do homem comum em sua busca de liberdade, embora Tom lamente os incessantes apelos da propaganda: “O fato é que as liberdades individuais estão desaparecendo. Inclusive a liberdade de você ficar quieto, nem essa existe mais. Nem o direito ao silêncio você tem: se você for à Floresta da Tijuca, tem um sujeito com um radinho de pilha que está anunciando um produto. E na praia deserta da Barra da Tijuca, tem também outro radinho de pilha. No carro também tem outro. Em toda a casa tem uma televisão ligada para dizer que pasta dental você deve usar, que gilete, que produto você deve vestir. Acho que tudo isso cerceia a liberdade”.

A quietude é repleta de sonoridades, e ao mergulhar no mar do nada (no vazio) encontramos sons primordiais que podem se transformar em partituras de intenso prazer e valor estético musical. A harmonia tão curtida de Tom é um resto de som na luz da manhã.

John Cage provavelmente acharia Tom um artista desconectado de seu tempo, um purista alienado. Mas o olhar harmônico (confortante) de Tom não casava com o olhar perturbador de Cage, que declarava: “O silêncio não existe”. Para Tom, a natureza e o coração (os afetos sociais) são o lugar do silêncio, das harmonias condutoras de estados de graça. Já para Cage, esses estados de graça extrapolam o lugar paradisíaco jobiniano para sacralizar os sons ambientais inesperados. Todos os sons, inclusive os ruídos, constituem uma linguagem musical. O importante é ter uma postura de quem escuta a realidade sonora do mundo. Cage achava que a música deveria ser uma arte crítica de seu tempo em vez de apenas uma estética confortante. Tudo é uma questão do lugar da harmonia ou, como dizia Cage, “a arte é uma espécie de estação experimental em que a gente ensaia viver”. Mas o barulho incomodava e muito o harmonioso Tom. E o radinho, como era irritante...

A experiência com a composição, mais especificamente com o uso da palavra, faz de Tom um brincante cheio de bossa, investindo nos usos e desusos da língua portuguesa. Amante da semântica, dos trocadilhos e das invenções linguísticas de João Guimarães Rosa, ele tece um mosaico instigador de descobertas de um novo sentido das palavras – uma bossa nova para provocar as certezas do alcance das palavras musicadas: “é madeira de vento... é o vento ventando... festa da cumeeira...”. É um sopro de substantivos que joga nos ouvintes uma enxurrada de palavras expatriadas. Sonoridades buriladas pela troca do lugar usual das palavras em união estável. Uma orgia semântica fechando o verão. 

Com 36 anos Villa-Lobos foi para Paris. Com 36 anos Tom Jobim foi para Nova Iorque. Em 1962, acontece o histórico e imprevisto concerto da bossa-nova (new Brazilian jazz por lá) no Carnegie Hall. O violão gago (a dissociação entre o ritmo da voz e do violão) sai do território nacional e mostra uma maneira nova de tocar: o samba de bossa nova influenciado pela música clássica e o jazz. Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Sergio Mendes levam para o EUA um ritmo que marca uma ruptura estética com o samba tradicional e que agora aparece com uma letra mais sofisticada (uma poesia erudita), sob o olhar de jovens de classe média branca da cidade. A origem de todo esse movimento vem de João Gilberto, com seu jogo rítmico entre o violão e a voz. A primeira obra com criações no estilo bossa-nova é Chega de saudade, de João Gilberto, com arranjos e direção artística de Tom Jobim. 

Tom Jobim e João Gilberto têm em comum a questão do toque sutil. Um toque que transforma a produção sonora do objeto musical criando novas sonoridades, trazendo mais potência aos sons criados. Thereza, a primeira mulher de Tom, diz que esse gesto se denomina touchet, que é uma maneira de produzir o som com delicadeza. Mas, sem dúvida alguma, é um gesto resultante da contestação do estabelecido, do apuro técnico, do estudo das nuances musicais e de suas possibilidades artísticas. Um toque de gênios, de Midas, criando sonoridades que conduziram a uma nova escuta e à produção de sensibilidades que foram além de seu tempo. Uma delicadeza fortalecida pelo domínio técnico e pelas incertezas da criação.

Em 1966, estava Tom no Bar Veloso (atual Garota de Ipanema) quando um garçom, que não era o seu sósia, avisa que tinha um gringo ao telefone querendo falar com ele. A princípio, pensando que era um trote, recebe o convite de Frank Sinatra para gravar o álbum Francis Albert Sinatra and Antonio Carlos Jobim, com composições e acompanhamento de Jobim: “Quero fazer um disco com você e quero saber se você acha isso interessante (...). Você me acompanha ao violão?Apesar de sua preferência pelo piano, Tom acaba aceitando acompanhá-lo ao violão. 

Esse álbum foi eleito pela crítica norte-americana o disco do ano de 1967 e estava em segundo lugar em vendas, perdendo apenas para o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. O peso artístico do álbum era inquestionável: Garota de Ipanema, Dindi, Corcovado, Meditação, Inútil paisagem, Insensatez, Amor e paz, e mais as memoráveis Change partners (Irving Berlin), I concentrate on you (Cole Porter) e Boubles, bangles e beads (Wright e Forrest). Uma voz e canções do mesmo quilate. Dois gênios que se ajustaram e sublimaram o humor e as agendas. Sonoridades irmãs do primor técnico e da beleza, levando-nos a voar ao som de Fly me to the moon.


Do interior da casa rumo ao sertão


As casas de Tom são os lugares da intimidade dos amigos, da família e da sonorização de seus afetos – canções emblemáticas de um tempo: “Vou fazer a minha casa/do alto de uma canção/e agradecer a Deus Pai/ a sobrante inspiração”. A importância da casa em seu percurso de vida não se dá somente na esfera do afeto (uma casa de oração) e no ato de criação, mas também no tocante à técnica, em que se faz presente o arquiteto. 

Tom participou ativamente do processo de concepção e construção de suas moradias. Em 1972, as seguintes especificações foram passadas por Tom ao arquiteto Wilfred Cordeiro para a construção da casa de Poço Fundo: “O sol da manhã devia bater nas janelas dos quartos; a parede sul devia ser cega, por causa do vento e das chuvas de verão; os quartos isolados do chão, para evitar umidade; telhas coloniais grandes em teto sem forro, pé-direito de sete metros de altura; degraus nas portas de entrada, para evitar cobras”.

O cuidado e o esmero com a construção de suas casas são da mesma ordem com que ele constrói suas canções. São criações nascidas clássicas devido à consciência da harmonia da casa com a natureza e os afetos e da música com seu passado harmônico e as almas do povo e da natureza. É a alegria da criação em pé de igualdade com o divino: “é a viga, é o vão, festa da cumeeira”.

A casa enquanto sede de suas saídas para olhar o mundo e conhecer a cultura dos sertões que estão em toda parte. Tom admirava o letrado Guimarães Rosa, que ousava na apropriação do imaginário do homem simples em suas articulações orais – palavras que revelam a musicalidade do espírito de um lugar. Ir ao encontro dos interiores do mundo, onde o acervo genuíno da linguagem e do gesto demarca o movimento de vozes que transpiram eloquência vital e definem as partituras das canções. 

A natureza, esta terra das palmeiras onde canta o Matita Perê, está clamando pelas andanças de homens espirituosos que redescubram a alma do Brasil: “Eu não trabalho com folclore, mas acredito que nos dias de hoje ainda é possível a um músico jovem sair daqui do Rio e, em vez de ir para Paris ou Nova Iorque, ir para o Brasil e através do folclore compor uma obra sólida como é o exemplo do Villa-Lobos”.

Tom desbravou o mundo das janelas de suas casas e de vez em quando dava uma saída pelos arredores – os quintais, até onde aguentavam os seus pés. De qualquer forma sua imaginação ia bem longe. Afinal, dizia ele: “Há sessenta anos que eu vejo o mico sagui pulando aí do galho”.

É um regato, é uma fonte, é um peixe, é um gesto (...)”: são alguns dos elementos do discurso de Tom em um momento de celebração da natureza, do interior do Brasil, constituído por um repertório de canções ecológicas. Chovendo na roseira, Boto, Correnteza, Passarim, Rancho das nuvens, Nuvens douradas e Águas de março formam o núcleo Debussy da obra de Tom, devido à relação do músico e compositor francês com a natureza e às  respectivas influências estéticas de Debussy em seu processo criativo.

No ano de 1972, em um momento de pouca alegria em sua vida, Tom escreve o poema Águas de março num pedaço de papel de pão, no sítio de Poço Fundo. As limitações de humor são superadas por um súbito de criação que o leva a vislumbres de alegria e a promessas de encanto na garrafa de cana e na prata brilhando: é a chegada de um belo horizonte. As influências para a composição da obra vêm do término do verão em Poço Fundo, da construção da casa, do episódio da epopeia sertanista do século XVII no poema “O caçador de esmeraldas”, do mestre parnasiano Olavo Bilac: “Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada/ Do outono, quando a terra, em sede requeimada/Bebera longamente as águas da estação,/Que, em bandeira, buscando esmeraldas e prata;/À frente dos peões filhos da rude mata,/Fernão Dias Pais Leme entra pelo sertão”. E vêm também do trecho de um canto de macumba: “É pau, é pedra, é seixo miúdo, roda a baiana por cima de tudo”, gravado com sucesso por J.B. de Carvalho, do conjunto Tupi.

Nesse cruzamento de criação percebemos o diálogo do erudito com o popular, em que se alternam versos pontuados pelo otimismo e pessimismo. Uma tensão narrativa (harmônica) de um artista diante da dor do mundo e da revelação semântica que clareia esse mesmo mundo. Um processo de alquimia entre o cotidiano e a natureza no interior dos estados d’alma. Um ensaio sobre a poética do humano em intervalos expressivos e plásticos. “O samba mais bonito do mundo”, pelo olhar de Chico Buarque.

Uma criação em tom confessional diante de ingredientes da cultura e da natureza que se misturam em movimentos de irmandade, resultando em um amálgama afetivo do estar presente no mundo. Águas de março é um poema-ensaio sobre os ciclos da percepção (da memória) de um homem sensível, atento à simultaneidade das experiências do tempo de criação. Rachel de Queiroz fala sobre os caminhos da canção em sua vida: “Coisa bela, estranha e dura. Fere o coração com um toque de pedra e depois o afoga na cheia das águas. Promete e recorda, memória de infância e angústias da força do homem. Num velho pode suscitar angústias antigas”. Um desabafo, uma elucubração sobre as águas do pensamento e da emoção.

 As canções de Tom estão por aí a embalar o molejo e a sedução das garotas de Ipanema, a afinar os possíveis desafinados, a desafiar o Carmelo na procura do paradeiro do sabiá, a clamar pela sempre eterna Gabriela, a fazer chegar sensatez ao desprovidos de bossa, a iluminar os poetas a achar um cantinho para tocar violão, mesmo que seja à base de Coca-Cola, e a convencer o vento a meditar sobre as águas da inspiração.