Arcos da Lapa por Jorge Costa - Intervenção de Brian Eno (2012) |
Foi em uma praia conhecida como “Areias de Espanha” que,
em 1751, ao redor de um seminário e de uma capela em louvor de Nossa Senhora,
teve origem o bairro da Lapa. A demarcação na geografia da cidade de uma área
que simbolizou o “Rio Noturno” - em alusão aos áureos tempos da boemia carioca
- permitiu que fosse estabelecido um espaço onde a questão da pulsão do sujeito
engendrou estilos de vida dos mais transgressores. Os personagens noturnos da
Lapa produziram uma cultura própria que ainda povoa o imaginário da sociedade
carioca.
A caracterização do bairro como ponto oficial da
malandragem, da boemia e do prazer explícito se deu por volta de 1920, com a
presença de algumas das figuras mais brilhantes e expressivas do modernismo
brasileiro - Villa Lobos, Manuel Bandeira, Di Cavalcanti, Sergio Buarque de
Hollanda, entre outros artistas e intelectuais. Este grupo foi quem descobriu a
Lapa e lançou a legenda romântica de uma “Pigalle, Montmartre ou Montparnasse”
dos trópicos. O modernismo aparece como um movimento que buscou a expressão do
nacionalismo e do individualismo, e a produção de uma arte nacional a partir de
uma pesquisa apurada sobre nossas raízes culturais.
A fabricação do conteúdo e da forma do bairro foi
realizada através de um fazer de escritores, sambistas, mulheres famosas e
valentões. O que caracteriza um espaço é a nomeação e a comunicação de seus
personagens, que irão identificar e simbolizar um determinado território. A
invenção de um espaço se dá a partir do sujeito, do espírito humano que dá
sentido e forma a uma configuração espacial.
Na realidade, o bairro é uma área que sofreu mudanças
significativas no tocante à sua apropriação. Até fins do século XIX, a Lapa era
um bairro estritamente familiar, ocupado pela elite imperial, sendo uma área
com características da ordem do privado, pois os laços afetivos que se
estabeleciam representavam um universo tradicional da sociedade, onde a pulsão
do sujeito se dava na casa - a intimidade do lar.
Em outro momento, por volta de 1910, a Lapa apresentava
dupla personalidade: residências familiares e “pensões suspeitas”. Observamos,
também, o início do uso do bairro como área de grande importância no cenário
político nacional, como diz Gasparino Damata: “O destino da Nação palpitava no
coração da Lapa”. Os hotéis eram lugares onde ocorriam grandes conspirações
políticas, palcos do nascimento de estratégias que iriam tirar ou levar ao
poder figuras de nossa história.
A Sala Cecília Meireles, que, originalmente, foi o
Grande Hotel da Lapa e, depois, o Cinema Colonial, ainda nos remete a um tempo
de intrigas e desejos desenfreados de poder. As notas musicais emitidas
harmonizam o imaginário da sociedade, oferecendo uma nova técnica para ser
usufruída pelo sujeito. O espaço é um elemento da ordem da invenção, visto que
sua sobrevivência se deu através da sustentação em um processo de reinvenção
contínua, atento às mudanças socioculturais da região onde estava inserido. A
Sala Cecília Meireles faz parte da tríade simbólica da Lapa, estrutura que
mantém viva a memória do bairro, contribuindo para uma investida permanente em
seu imaginário.
Os Arcos da Lapa, eixo que corta a região coronariana do
bairro, a linha de pulsação dos sentimentos (o aqueduto - o elemento água), o
limite de comunicação (circulação) de experiências que liga a região cerebral
da cidade (o centro do Rio) a uma região do sublime (Santa Teresa) - área do
pensar, da arte e do religar-se ao todo, aparecem como elementos representantes
da técnica na tríade simbólica. Podemos dizer que os Arcos são a presença mais
viva do espírito da técnica na cidade, onde o caráter técnico foi elevado ao
patamar de obra de arte, havendo a transformação do conteúdo de um objeto de
natureza estritamente racional (técnica) em um símbolo da contemplação e da
modulação do infinito.
Por fim, a Igreja de Nossa Senhora da Lapa ou Desterro
da Lapa exerce o papel de elemento da ordem da pulsão, do desejo religioso de
levar a fé pelos labirintos da região. Como marco de fundação do bairro, a
igreja é uma referência permanente no imaginário local, promovendo articulações
com as produções sociais e culturais ocorridas ao longo do tempo. Luís Martins
comenta: “Basta dizer que a Lapa é um centro de meretrício todo especial, onde
vivem as mulatas mais sofisticadas do Rio, e esse meretrício se exerce no
ambiente místico da velha igreja e convento dos fransciscanos. A igreja não é
bela e não tem exteriormente nada que desperte a atenção artística. No entanto,
nenhuma outra no Rio terá a sua influência de sugestão religiosa”. Percebemos,
então, que o elemento-pulsão da tríade simbólica exerce uma influência na
padronização de comportamentos que irão se estabelecer no bairro. O sentimento
religioso, no sentido de alguém que faz votos a alguma coisa, traduz o perfil
dos personagens característicos da Lapa. As prostitutas, os malandros e os
boêmios são figuras que fazem votos ao sexo (prazer), à preguiça, à patifaria,
à bebida e à conversa fiada.
O bairro sustenta-se ao longo da história da cidade em
personagens e rituais eternizados por uma superestrutura (pulsão, invenção e
técnica) da ordem do simbólico. O espaço da Lapa é demarcado a partir de um
padrão religioso, com a impregnação no imaginário social de sujeitos e objetos
que realmente representam a verdadeira natureza da forma e da função do bairro.
A imagem-símbolo da Lapa, no entanto, constitui-se a
partir de 1915, com a expansão pelas ruas adjacentes das “casas suspeitas”. A
Nova Lapa é o lugar de crimes passionais, de boemia desenfreada, de
malandragem, de sambistas, das grandes mulheres e dos desordeiros perigosos. O
bairro é conhecido como o local dos cabarés e cassinos famosos. O prazer, nesse
período histórico, é oficializado e assimilado pela sociedade, configurando-se
em um tipo exótico de sacerdócio - o do prazer e do jogo - de uma vida noturna
dissoluta. O caráter público do bairro é preponderante sob a ótica privada,
caracterizando o espaço como um universo destituído de limites e pudor, onde o
prazer assola sua geografia e destitui qualquer tipo de controle e tradição. O
poder já não é mais da ordem da privação, mas, sim, da depravação, do
esgarçamento dos canais de produção do prazer. Hernani de Iraja diz que “A Lapa
tornava-se um mostruário do mundo, com seus vícios, pecados e paixões, com suas
virtudes, encantos e amores, vitrine de atrações, ligações efêmeras, ciúmes e
juras de balcão de chope e promessas irrealizáveis em cinco minutos de cama”. O
lado dito sombrio é “elevado” à condição de um universo real da experiência
humana, e sua dramatização sugere a possibilidade de um significado, uma
referência para a reflexão e criatividade.
Os personagens: a fé e o pecado nas ruas
O solo da epistemologia urbana da Lapa passa
obrigatoriamente pelo estudo de seus personagens, dos perfis humanos que
fizeram a história do bairro. Cada um deles representa uma faceta da lógica do
funcionamento da região. O corpo e o pensamento promovem no espaço uma cultura
própria que poderá identificar uma determinada cartografia. Os personagens
aparecem nos mapas urbanos como signos representativos de estilos de vida, de
uma forma de ver e intervir no mundo.
A libertinagem tinha morada própria; era preciso um
clima de sedução com luzes especiais - vermelhas - e camas disponíveis. A
ambientação dos bordéis refletia, na realidade, a sociedade onde eles
funcionavam. A configuração do espaço se dava a partir de uma especialização
das diversas etapas do produto (o ato sexual) a ser oferecido. O ato sexual,
enquanto objeto comercializável, demandava uma rotina de práticas pertinentes a
um determinado espaço. Dessa forma, o bordel aparece como uma fábrica de
prazeres, sistematizado em formas (os diversos espaços da unidade fabril) e
conteúdos (a cultura do bordel - linguagem, conhecimento, moda, tipos de prazer
e a qualidade do ato sexual).
O espaço de prostituição é um mercado onde são
realizadas negociações que objetivam a construção da ordem social, a superação
do conflito entre as normas sociais estabelecidas e a sexualidade organizada.
Essas negociações levam em conta preços, práticas e tempo, que dimensionam o
“programa” a ser realizado pelas partes.
A função social da prostituta se configura a partir de
um preenchimento de um vazio sexual e/ou afetivo: “O papel da prostituta supõe,
desta maneira, a prestação de serviços a que os homens não têm acesso no âmbito
da casa”, comenta Renan Springer Freitas. A prática sexual, assim, sai do
âmbito privado (a casa) e vai para o âmbito público (o bordel), onde passa a
sofrer um tratamento sob a ótica do mercado. A satisfação do desejo sexual é
alcançada a partir da sacralização do mercado paralelo do prazer, onde o
trabalho da prostituta se constitui em um serviço de utilidade pública.
A maioria das casas de mulheres era de procedência
francesa. As polonesas - as polacas - aparecem também no bairro trazidas pela
cafetina Suzana Casterat que implementou uma rede internacional de importação
de escravas brancas com vistas à prostituição, denominada de “Migdal”. Alice
Cavalo de Pau deu continuidade ao trabalho da mestra Suzana, contribuindo para
o desenvolvimento da profissão mais antiga do mundo no Rio de Janeiro. Sua
origem há 3.000 anos aparece sob a forma de uma obrigação religiosa, sendo, com
o decorrer do tempo, profanada.
Na Lapa apareciam mulheres por todos os cantos, dentro e
fora de seus quartéis. O elemento fêmea se ressaltava perante os demais tipos
humanos; elas eram exuberantes e algumas vezes cultas. Chouchou, francesa,
leitora de Colette e assinante da Nouvelle Revue Française, aparecia como uma
mulher disputada não só pelo seu corpo, mas, também, pela sua cultura. Muitos
homens a procuravam para ter o desfrute de seu sexo e de uma boa conversa.
Transar com Chouchou significava gozar com o corpo e com a mente. Outra
prostituta famosa foi Frida Mitchell que foi citada em inúmeros livros, peças e
novelas.
As prostitutas naquela época eram, de fato, artigos de
luxo, disputadas não só por homens comuns, mas por políticos, artistas e
intelectuais. Cafetinas como Tina Bonalis, Suzana Casterat, Tina Tatti, entre
outras, ficaram na história do bairro como grandes mulheres agenciadoras do
prazer.
Percebemos a aproximação do caráter sagrado e profano na
Lapa nas décadas de 20 a 40, quando as prostitutas polonesas e francesas iam
até a Igreja de Nossa Senhora da Lapa pedir perdão por seus pecados. O elemento
simbólico de natureza religiosa do bairro recebe em seu território mulheres que
irão abdicar temporariamente de sua vida profana. O alimento espiritual aparece
como fonte de purificação dos corpos, de um apagamento do passado sexual, mas
que encontra, no futuro próximo, um desejo e uma necessidade irresistíveis.
Um personagem de grande nome na época foi Madame Satã:
toxicômano, homossexual notório e valente. Ele brigava e ia até as últimas
conseqüências pelo que queria, seja por seus amores ou por fazer valer sua
opinião. Foi ator de teatro, compositor, personalidade conhecida não só no
bairro mas, também, na cidade; o primeiro travesti-artista do Brasil conhecido
como “Mulata do Balacochê”, famoso na região da Praça Tiradentes, por volta de
1928, centro da vida teatral do Rio de Janeiro. O apelido “Madame Satã”
apareceu em 1938, depois que ele se fantasiou de diabo no carnaval.
Madame Satã era respeitado, temperamental e figura de
influência em diversos meios sociais. Na hierarquia da malandragem carioca,
visto que cada área da cidade tinha um malandro responsável, Madame Satã dava
cobertura ao bairro da Lapa, sendo um gerente da ordem e da desordem das
pulsões humanas. A referência à sua presença ou ao seu nome era o suficiente
para evitar brigas, afastar desordeiros e inibir adversários. Na época, ele
vendia jornais, tanto quanto hoje vendem as estrelas de cinema e os astros do
esporte.
Segundo alguns autores, era, na realidade, um
justiceiro, que subverteu o estereótipo do homossexual frágil e delicado. Em
sua vida de malandro, respondeu a vinte e seis processos, sendo condenado em
dez, passando cerca de vinte e oito anos na prisão. Apesar de seu temperamento
forte, foi um preso exemplar, exercendo a função de cozinheiro de fama na
prisão.
A questão da inventividade é notória no território da
Lapa. A invenção não era só do prazer e do pensamento, mas de inventos que
surgiram no bairro. Um lugar de personagens de intensa pulsão permite que haja
uma produção rica em criatividade e que seja, de fato, representativa do meio
cultural, alvo de provocação pelos sujeitos desejosos.
Os irmãos Meira
foram os introdutores no Rio do célebre jogo da chapinha, expediente da
malandragem. Os malandros, além do jeito, do linguajar, da roupa e dos hábitos,
tinham seu jogo característico, uma forma típica de se entreter. O jogo da
chapinha era uma técnica de extensão do corpo do malandro, utilizando a ginga
das mãos e o manejo dos olhos. O malandro era o prestidigitador de expedientes
fáceis.
A figura do malandro aparece durante a década de 20 nos
morros e no centro da cidade. Muitos deles eram ex-escravos e a opção pela vida
da malandragem ocorreu pela falta de um trabalho que não se enquadrasse nos
padrões de miserabilidade social. No final do Império, já se podia perceber a
origem dessa classe através da prática da capoeira.
As características principais do malandro eram: a
valentia sem violência, muita elegância e estilo, e sempre uma vida boa e, como
diz Moreira da Silva: “Malandro é aquele que não pega no pesado. Malandro é o
gato que come peixe sem ir na praia”. Geralmente eram jogadores, vigaristas,
cafetões, valentes, sambistas e, também, aqueles que tinham um emprego público
e viviam na “maré mansa”.
O visual do malandro era composto pelo chapéu de panamá
(instrumento de percussão ou elemento que confundia o adversário em uma briga);
a camisa de seda -palha com botões brilhantes (tecido que impossibilitava o
corte da navalha); gravata de tussot branco; calças almofadinha (com uma
navalha no bolso); chinelo cara-de-gato ou tamanco; e os dedos cheios de anéis.
Nos anos 40, devido à perseguição de Getúlio Vargas - período do Estado Novo -,
que cultuava o trabalho e a produção, os malandros se tornaram mais discretos
visualmente, passando a usar o terno de linho branco com calça “boca de choro”
(estreita), chapéu de panamá e sapato de duas cores ou do tipo carrapeta (salto
mexicano).
A voz da malandragem, na realidade, foi a classe de
sambistas do morro, que viveu na década de 30, época de ouro da música popular
brasileira, onde o malandro foi rei e admirado pela comunidade. O tipo de samba
que teve origem na malandragem e foi desenvolvido por ela aparece como uma fase
de resistência a um segmento social preto, pobre e proletário, contrário aos valores
impostos pela classe hegemônica.
Os malandros distribuíram o espaço da cidade entre si,
por bairros. Cada bairro tinha um representante que era responsável pela ordem
local, tais como: Praça Onze - Saturnino; Saúde e a zona de estiva - Gavião
Branco e Gavião Preto; Mangue - Índio da Carmem e Tinguá; Lapa - Madame Satã; e
Praça Mauá - Henrique Finfim. O malandro tinha importância sociocultural, sendo
um elemento da manutenção da ordem e da promoção do prazer. Na década de 50, a
maioria dos malandros de nome já estava presa ou morta. O povo não tinha mais a
representatividade da boa vida oficial, a voz da vida fácil calou-se e o gato
agora precisa ir à praia para comer peixe.
Os personagens da Lapa foram as figuras freqüentadoras
dos bares (Siri, Café Colosso, Capela, Café Bahia e o Imperial); cabarés
(Apolo, Royal Pigalle, Vienna Budapest, Novo México, Casanova e o Cú da Mãe);
cassinos (High Life); prostíbulos; e ruas. Neste cenário, as pessoas aprendiam
e desenvolviam suas técnicas, relacionavam-se entre si e com os que vinham de
fora, enfim, exerciam sua sociabilidade. Uma cultura própria foi produzida e
deixada de herança para as gerações posteriores.
A importância desses espaços, enquanto locais da
vanguarda sociocultural, aparece representada por um bar na esquina da Rua da
Lapa com Rua da Glória, onde foi composto o primeiro samba gravado da história
- a música “Pelo Telefone”, de 1917. O local foi freqüentado por artistas como
Sinhô, Pixinguinha, Mário Reis, entre outros. O samba, de autoria de Donga e
Mauro de Almeida, teve como fonte de inspiração a repressão ao jogo de azar. A
obra retrata em verso e melodia a questão da corrupção da polícia e da
popularidade do jogo e transformou-se em um grande sucesso durante vários
carnavais.
Esses espaços de prazer explícito - terra de pura orgia
- foram locais onde o modernismo do Rio de Janeiro se desenvolveu, lançando
obras e figuras que entraram para a história cultural carioca e brasileira.
Depois da época do apogeu da Lapa - 1930 a 1938 -, o
bairro entrou em decadência. Nos anos 40, Getúlio Vargas mandou fechar os
prostíbulos, reprimindo, assim, um serviço de utilidade pública. Depois desse
período, a Lapa só viveu uma noite de esplendor, relembrando a Lapa dos tempos
áureos, quando foi comemorado, em 1945, o fim da grande guerra mundial. A
década de 40 marca a mudança da vida noturna carioca para a zona sul, mais
especificamente, para Copacabana - uma boemia mais familiar e ligada à classe
média. O espaço da cidade se redimensiona com a expansão da vida social para
novos bairros, não apagando de nossa memória coletiva, entretanto, todo o
esplendor, criatividade e desregramento social que marcaram o bairro da Lapa.
O desejo ainda mora ao lado ...
Ótimo texto, Jorge Costa, ótima panorâmica, obrigado!
ResponderExcluirA Lapa tem seus mistérios! Abs.
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