terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Direção de Arte









A criação do visual do filme: reflexões sobre direção de arte


 

A imagem nos dias de hoje é um poderoso símbolo cultural, psicológico e estético, que estimula a produção imaginária do conjunto da sociedade. Em um sentido psicossocial, a imagem – do cinema, da televisão ou do próprio cotidiano da vida urbana – é uma projeção de nosso universo interno. Trabalhar com ela é conectar-se com o imaginário social e cultural, pois ela é capaz de deflagrar símbolos que permitirão a expansão do pensamento, fazendo emergir novas percepções e sentimentos. O homem se desenvolve através de estímulos, e nada melhor que a obra cinematográfica para despertar, em seu interior, questões fundamentais para o aperfeiçoamento individual e social.

O trabalho com a direção de arte se realiza a partir da dramatização do objeto, da inflexão (entonação) dos diversos elementos que participam da produção cinematográfica. Esse processo valoriza e contextualiza uma idéia através das diversas formas que criam vida no enredo em desenvolvimento. Cada um desses elementos contribui para o acabamento da obra, e o importante é que o espectador perceba a função de cada objeto, de cada atitude. A posição, a forma, a intenção e a cor do objeto, assim como o ator (a caracterização dos personagens) e o próprio espaço precisam estar sintonizados na trama audiovisual. É necessário transmitir coerência, verdade, criatividade e emoção. O espaço como um todo, envolvendo locações e cenários adequados e o entrosamento entre seus componentes, deve constituir uma poética que leve o observador a absorver o conteúdo da história. O processo artístico só se estabelece quando há assimilação afetiva do objeto e do espaço. Dá-se, segundo Jean-Claude Bernardet, uma “construção de conexões”, um momento de aprofundamento do sentido e da natureza da relação do espectador com a obra cinematográfica.

A constituição de conexões já faz parte da própria cultura do cinema. O diálogo entre o espaço e o tempo estrutura a sua natureza. O cinema espacializa o tempo, ou seja, demarca na trama espaços de ação de diversos tempos históricos. A arquitetura, como elemento da ambientação da história (espaço de locações), é uma arte dinamizadora do espaço e, conseqüentemente, do tempo desse espaço. A escolha das locações de um filme vem a ser uma cor da obra cinematográfica, conforme explica o diretor Sidney Lumet: “Um resultado natural da cuidadosa seleção de locação é que quase sempre criamos uma palheta de cor para um filme”. O espaço, então, apresenta uma determinada cor que define uma época em suas especificidades psicológicas e sociais.

Assim, a produção da imagem no cinema se dá com base em uma estratégia psicológica que possa criar uma atmosfera com sentido de “verdade”. A esse respeito comenta o diretor de arte Marcos Flaksman: “Cinema é mentira. Só que para mentir corretamente o profissional tem que saber exatamente como é de verdade”. A simulação da realidade, apoiada em um conhecimento histórico e cultural, tem que ser convincente para quem assiste ao filme, propiciando uma recepção reveladora que justifique a presença do espectador na sala de exibição. Deve ser, enfim, um processo artístico coerente que o induza a uma viagem imaginária.

A direção de arte busca um entrosamento entre o cenário, as locações, os efeitos especiais, o figurino, o cabelo, o gestual, a fala, a maquiagem, a iluminação e a cor, de modo a dar vida a uma idéia que deverá sensibilizar e transformar o espectador. Segundo Lumet, “junto com a câmera, a direção de arte (os cenários) e o guarda-roupa são os elementos mais importantes na criação do estilo – em outras palavras, do visual – do filme”. A maneira de filmar – ou seja, o uso de determinados tipos de lentes e filtros, a iluminação, a posição e o movimento da câmera – compõe com os outros elementos de criação artística um desenho de produção que irá transmitir o tema do filme. Toda contribuição técnica e estética deve desenvolver, enriquecer e evidenciar o tema da trama cinematográfica.

A imagem do cinema tem uma função social: trazer luz a questões e acontecimentos que, muitas vezes, não nos é permitido perceber em nosso cotidiano. A intenção não é apenas provocar o desejo de apreender uma realidade que necessita de certo distanciamento para ser assimilada, mas também aproximar o universo do indivíduo de uma cena imaginária que transmite estímulos e códigos tanto de uma cultura particular quanto da visão de um diretor.

O quadro de imagem do cinema só terá uma direção de arte representativa quando configurar o papel de um pintor que dá pinceladas em determinadas áreas da tela para imprimir vida e significado a uma obra. Podemos associar a arte do pintor com a técnica de storyboard, usada pelo profissional na elaboração de uma seqüência de desenhos das principais cenas do filme para planejar e definir sua técnica e estética. Por ser uma “obra fechada”, o cinema tem a possibilidade de formular melhor a estratégia de planejamento da produção.

Para o crítico e teórico de cinema André Bazin, o quadro de imagem é uma janela aberta para o mundo, um fragmento da realidade. Uma potencialização entre os elementos técnicos e estéticos desse quadro proporcionará ao espectador uma ampliação de sua visão narrativa. Para tanto, a intuição, a criatividade, a técnica e o conhecimento precisam ser desenvolvidos e utilizados pelo profissional do departamento de arte para dar forma a uma época, a um contexto, explorando sentimentos e pensamentos de determinado indivíduo e grupo social, no intuito de construir ou recompor um universo sociocultural – o clima de uma época – com um perfil psicológico específico do espaço e dos personagens. Não se pode deixar de ressaltar que todas as aptidões a serem desenvolvidas não devem estar dissociadas da realidade orçamentária da produção. A pressão orçamentária se evidencia no trabalho criativo, tanto em seu plano técnico como estético.

A direção de arte se estabelece tendo por princípio a idéia de justificativa, ou seja, ela exerce um papel que justifica cada escolha a partir de uma perspectiva histórica, cultural, psicológica ou estética. O projeto de arte se estrutura por um conceito (espaço, tempo, textura, cor, luz, ...) expresso em cada segmento da obra cinematográfica. Outro papel importante é o de colaborar para que o espectador possa ver – e não só olhar – a obra audiovisual, o que lhe permite atravessar a estrutura objetiva em direção a uma subjetividade, ao espírito de uma idéia e de um fato. Com seu trabalho, o diretor de arte pode contribuir para o processo de educação dos sentidos e para o aprimoramento da sensibilidade do homem em relação ao seu universo social. A arte no cinema representa um ato de afirmação da identidade de uma época, promovendo o enriquecimento da vida do homem contemporâneo.