A criação do visual do filme: reflexões sobre direção de arte
A
imagem nos dias de hoje é um poderoso símbolo cultural, psicológico e estético,
que estimula a produção imaginária do conjunto da sociedade. Em um sentido
psicossocial, a imagem – do cinema, da televisão ou do próprio cotidiano da
vida urbana – é uma projeção de nosso universo interno. Trabalhar com ela é
conectar-se com o imaginário social e cultural, pois ela é capaz de deflagrar
símbolos que permitirão a expansão do pensamento, fazendo emergir novas
percepções e sentimentos. O homem se desenvolve através de estímulos, e nada
melhor que a obra cinematográfica para despertar, em seu interior, questões
fundamentais para o aperfeiçoamento individual e social.
O
trabalho com a direção de arte se realiza a partir da dramatização do objeto,
da inflexão (entonação) dos diversos elementos que participam da produção
cinematográfica. Esse processo valoriza e contextualiza uma idéia através das
diversas formas que criam vida no enredo em desenvolvimento. Cada um desses
elementos contribui para o acabamento da obra, e o importante é que o
espectador perceba a função de cada objeto, de cada atitude. A posição, a
forma, a intenção e a cor do objeto, assim como o ator (a caracterização dos
personagens) e o próprio espaço precisam estar sintonizados na trama
audiovisual. É necessário transmitir coerência, verdade, criatividade e emoção.
O espaço como um todo, envolvendo locações e cenários adequados e o
entrosamento entre seus componentes, deve constituir uma poética que leve o
observador a absorver o conteúdo da história. O processo artístico só se
estabelece quando há assimilação afetiva do objeto e do espaço. Dá-se, segundo Jean-Claude
Bernardet, uma “construção de conexões”, um momento de aprofundamento do
sentido e da natureza da relação do espectador com a obra cinematográfica.
A
constituição de conexões já faz parte da própria cultura do cinema. O diálogo
entre o espaço e o tempo estrutura a sua natureza. O cinema espacializa o
tempo, ou seja, demarca na trama espaços de ação de diversos tempos históricos.
A arquitetura, como elemento da ambientação da história (espaço de locações), é
uma arte dinamizadora do espaço e, conseqüentemente, do tempo desse espaço. A
escolha das locações de um filme vem a ser uma cor da obra cinematográfica,
conforme explica o diretor Sidney Lumet: “Um resultado natural da cuidadosa
seleção de locação é que quase sempre criamos uma palheta de cor para um
filme”. O espaço, então, apresenta uma determinada cor que define uma época em
suas especificidades psicológicas e sociais.
Assim,
a produção da imagem no cinema se dá com base em uma estratégia psicológica que
possa criar uma atmosfera com sentido de “verdade”. A esse respeito comenta o
diretor de arte Marcos Flaksman: “Cinema é mentira. Só que para mentir
corretamente o profissional tem que saber exatamente como é de verdade”. A
simulação da realidade, apoiada em um conhecimento histórico e cultural, tem
que ser convincente para quem assiste ao filme, propiciando uma recepção
reveladora que justifique a presença do espectador na sala de exibição. Deve
ser, enfim, um processo artístico coerente que o induza a uma viagem
imaginária.
A
direção de arte busca um entrosamento entre o cenário, as locações, os efeitos
especiais, o figurino, o cabelo, o gestual, a fala, a maquiagem, a iluminação e
a cor, de modo a dar vida a uma idéia que deverá sensibilizar e transformar o
espectador. Segundo Lumet, “junto com a câmera, a direção de arte (os cenários)
e o guarda-roupa são os elementos mais importantes na criação do estilo – em
outras palavras, do visual – do filme”. A maneira de filmar – ou seja, o uso de
determinados tipos de lentes e filtros, a iluminação, a posição e o movimento
da câmera – compõe com os outros elementos de criação artística um desenho de
produção que irá transmitir o tema do filme. Toda contribuição técnica e
estética deve desenvolver, enriquecer e evidenciar o tema da trama
cinematográfica.
A
imagem do cinema tem uma função social: trazer luz a questões e acontecimentos
que, muitas vezes, não nos é permitido perceber em nosso cotidiano. A intenção não
é apenas provocar o desejo de apreender uma realidade que necessita de certo
distanciamento para ser assimilada, mas também aproximar o universo do
indivíduo de uma cena imaginária que transmite estímulos e códigos tanto de uma
cultura particular quanto da visão de um diretor.
O
quadro de imagem do cinema só terá uma direção de arte representativa quando
configurar o papel de um pintor que dá pinceladas em determinadas áreas da tela
para imprimir vida e significado a uma obra. Podemos associar a arte do pintor
com a técnica de storyboard, usada
pelo profissional na elaboração de uma seqüência de desenhos das principais
cenas do filme para planejar e definir sua técnica e estética. Por ser uma
“obra fechada”, o cinema tem a possibilidade de formular melhor a estratégia de
planejamento da produção.
Para
o crítico e teórico de cinema André Bazin, o quadro de imagem é uma janela
aberta para o mundo, um fragmento da realidade. Uma potencialização entre os
elementos técnicos e estéticos desse quadro proporcionará ao espectador uma
ampliação de sua visão narrativa. Para tanto, a intuição, a criatividade, a
técnica e o conhecimento precisam ser desenvolvidos e utilizados pelo
profissional do departamento de arte para dar forma a uma época, a um contexto,
explorando sentimentos e pensamentos de determinado indivíduo e grupo social,
no intuito de construir ou recompor um universo sociocultural – o clima de uma
época – com um perfil psicológico específico do espaço e dos personagens. Não
se pode deixar de ressaltar que todas as aptidões a serem desenvolvidas não
devem estar dissociadas da realidade orçamentária da produção. A pressão
orçamentária se evidencia no trabalho criativo, tanto em seu plano técnico como
estético.
A
direção de arte se estabelece tendo por princípio a idéia de justificativa, ou
seja, ela exerce um papel que justifica cada escolha a partir de uma
perspectiva histórica, cultural, psicológica ou estética. O projeto de arte se
estrutura por um conceito (espaço, tempo, textura, cor, luz, ...) expresso em
cada segmento da obra cinematográfica. Outro papel importante é o de colaborar
para que o espectador possa ver – e não só olhar – a obra audiovisual, o que
lhe permite atravessar a estrutura objetiva em direção a uma subjetividade, ao
espírito de uma idéia e de um fato. Com seu trabalho, o diretor de arte pode
contribuir para o processo de educação dos sentidos e para o aprimoramento da
sensibilidade do homem em relação ao seu universo social. A arte no cinema
representa um ato de afirmação da identidade de uma época, promovendo o
enriquecimento da vida do homem contemporâneo.