terça-feira, 19 de fevereiro de 2019
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019
Patrimônio Cultural
Ensaio de uma ética do reuso patrimonial
Ouvir o silêncio de uma obra
arquitetônica requer, de quem ousa a essa anamnese de um corpo reconhecido
historicamente, um olhar que se volte ao contexto mental e a visão de mundo de
uma determinada sociedade em suas expressões artísticas e técnicas. Trata-se de
um exercício de testemunho do processo de criação de memórias na atualização do
passado. A cultura patrimonial produzida e reconduzida ao longo do tempo tem
sua morfologia, uso e fluxo de usuários desafiados sempre pelo tempo presente. O
presente é o condutor do olhar que desbrava as diversas camadas de um percurso
histórico que acumula verdades e invenções. Sob o ponto de vista da história
das teorias e das formas urbanas e arquitetônicas, Françoise Choay comenta: “O
monumento tem por finalidade fazer reviver um passado mergulhado no tempo”. E a
função, ou a nova função, que se dá a essa obra arquitetônica e urbanística
deve nos fazer lembrar de um passado, em processo de constante atualização, mas
entranhado no tempo presente. Um passado materializado em um corpo edificado e
que foi reconhecido por seu valor histórico, estético ou social.
A obra patrimonial tem um valor em si independente
do uso original ou de um reuso instituído pelos detentores da técnica e pelos gestores
sociais. Ela transcende a mera utilização de seu espaço, mas pode ser
enaltecida com o que eu denomino de “uso do pertencimento”, uma função ou uma
nova função que potencialize a morfologia, a Gestalt e o fluxo humano da obra em questão. Temos, assim, a
deflagração de uma Ética na obra arquitetônica e urbanística no momento que, a
partir de um processo antropológico do espaço, conquistamos o silêncio, o
estado de potência patrimonial. É o momento que nos tornamos testemunhas dos
rastros da fonte criadora que chegam ao tempo presente. E como comenta Choay em
relação à natureza do monumento: “Sua relação com o tempo vivido e com a
memória, ou, dito, de outra forma, sua função antropológica, constitui a essência
do monumento.” Acessar o tempo antropológico da arquitetura e do urbanismo
significa dar início a um processo de sustentação do valor histórico e estético
em suas respectivas atualizações e adequações quanto à manutenção da função
original ou de aquisições de novos usos, no âmbito de um olhar sob a égide do “uso
do pertencimento”.
Estar atento ao “uso do
pertencimento” não significa deixar de se ter a possibilidade de compatibilização
da forma original a um uso considerado distante (ou exótico) de sua primeira
função. A experimentação própria do método antropológico nos faz rever e
descobrir novos usos adequados a um contexto sociocultural mais urgente ao tempo
presente. E experimentar e nomear novos usos no percurso histórico da obra patrimonial
é instituir a dinâmica do procedimento ético no cotidiano da sociedade. É
realizar o exercício de uma retrospectiva da ocupação histórica na perspectiva
de tornar a história viva e afeta aos anseios sociais.
Na busca de uma nova subjetividade
pós-moderna, Rosi Braidotti comenta sobre a importância da escala da
micropolítica em ações específicas da cultura local: “A ética é uma questão de
experimentação, não de controle por meio de técnicas sociais de alienação.” O
pertencimento é dinâmico, mas coerente com a natureza da obra em sua necessidade
de ser objeto de apropriação técnica e social sustentável. A linha do tempo de
um patrimônio em processo de contextualização nos faz ter que experimentar
novas ações que não o tornem um objeto alienado, um arquivo morto. A prática da
micropolítica em um contexto de ressignificação de um espaço arquitetônico e
urbanístico conduz à descobertas de novas demandas sociais e funcionais que
poderão estar integradas às características físicas e estéticas da obra em
processo de requalificação.
A requalificação decorrente das
acomodações da cidade ao longo do processo de embate entre memória e
esquecimento no qual ocorrem ações de preservação e criação de novas
arquiteturas dentro da malha urbana, é materializado no que Choay denomina de
“competência de edificar”, um investimento de trabalho que é retomado a cada
geração. Uma retomada necessária à manutenção e a atualização do patrimônio
diante de novos contextos mentais, materiais, políticos e econômicos. A visão
de mundo é materializada através de formas que são o retrato da sociedade em
seu processo de capitalização social. A “competência de edificar” é o poder de
segurar o tempo frente à realidade entrópica que nos vigia e ameaça.
Uma ação ética profissional sob o
ponto de vista da “competência de edificar” aparece como uma iniciativa (ou uma
metodologia) de formação de vínculos simbólicos (culturais) com vistas à construção
de comunidades sustentáveis agregadoras de valores socioculturais e espirituais.
A dimensão do caráter sustentável na arquitetura e no urbanismo nada mais é do
que considerar a materialização do espírito do tempo em um projeto que demarque
a criatividade e a emoção em ações de políticas públicas que atualizem a
organização social. Ações essas que estão no território das micropolíticas da
arquitetura e do urbanismo locais no qual devemos garimpar e estabelecer os
verdadeiros vínculos criativos de novas técnicas e usos. Ou fazer retornar
antigos procedimentos vítimas de um processo de higienização feroz da memória
social. Trata-se de uma política do âmbito do ativismo cultural que reverencia
a emoção (o silêncio) perante a obra e os seus usuários.
De
que forma poderemos implantar um projeto de reuso que atenda ao momento social,
técnico e econômico de uma determinada localidade? De acordo com Choay: “A
prática de reutilização deveria ser objeto de uma pedagogia especial.” Uma
pedagogia que situe a materialidade da obra, a técnica e o reuso em um contexto
social no qual possa convergir o patrimônio cultural (a indústria patrimonial)
e o mercado, mais especificamente, o do turismo. Uma prática política de conciliação
entre a vitalidade artística do patrimônio e o seu engajamento socioeconômico. E
ainda, segundo Choay: “A indústria patrimonial, enxertada em práticas com
vocação pedagógica e democrática não lucrativa, foi lançada inicialmente a
fundo perdido, na perspectiva e na hipótese do desenvolvimento e do turismo.” O
turismo, enquanto força econômica, tem-se mostrado em alguns momentos predatório
em relação à preservação do patrimônio e à rentabilidade do próprio reuso que
pode causar a descaracterização de um formato funcional sustentável. Vemos
surgir réplicas de obras arquitetônicas e arqueológicas (“clones culturais”) que
passam a ser os espaços de uso ao público em substituição às obras originais
que ficam intocadas (museificadas), afastadas das forças de um turismo
selvagem. A pedagogia negada alimenta uma cidade em alta velocidade e com
déficit de afetos comunitários. E a pedagogia assumida é o elixir da Política
de Maquiavel.
Tentativas de reuso que são
simbólicas de uma sociedade estrangeira de si mesma é o caso do Hotel Glória,
projeto neoclássico do arquiteto francês Joseph Gire inaugurado em paralelo à
Exposição Internacional de 1922. Em ruínas desde o seu fechamento em 2008,
decorrente dos desvios éticos e políticos tão em voga, o hotel pode nos remeter
ao velho navio encalhado em uma praia lusitana do filme brasileiro “Terra
Estrangeira” do ano de 1995 de Walter Salles e Daniela Thomas. As grandes
navegações deixaram seus rastros no Brasil e em Portugal. Um velho navio à
deriva, uma arquitetura de uma cidade “maravilhosa” à deriva. Os mesmos confiscos
de identidade e econômicos desse cinema da retomada nos fazem presenciar
arquiteturas e uma cidade ainda deslocadas do seu real pertencimento sociocultural.
Pedagogias especiais precisam estar à vista no inventário da história das
arquiteturas e das cidades brasileiras.
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