quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Longevidade, Arquitetura e Cidade




Geografia do acolhimento: a moradia, a cidade e os longevos

“Com a maturidade, nos tornamos cada vez mais jovens. Isso também acontece comigo, embora não queira dizer muito, uma vez que, no fundo, sempre tive a mesma disposição da mocidade, encarando a idade adulta e a velhice como uma espécie de comédia.” Hermann Hesse



 
Foto: Matthew Bennett

 
            O tempo marca o corpo longevo nos espaços públicos e privados. O corpo longevo em meio a um fluxo livre e democrático entre uma moradia intencional e a cidade que se pretende acolhedora em suas práticas socioculturais. Uma trajetória a ser percorrida para a aquisição de saúde e sentido social. Uma tarefa de toda a sociedade brasileira diante do envelhecimento progressivo de sua população.
            Segundo os dados e projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, em 2010, a população brasileira perfazia 190,7 milhões, com 10,8% (20 milhões) de idosos; em 2017, 207,1 milhões, dos quais 14,6% (30 milhões) de idosos; e em projeção para o ano de 2060, 228,3 milhões, sendo 32,2% (73 milhões) de idosos. Com a triplicação dessa população em poucas décadas e a respectiva mudança no formato da pirâmide etária, a sociedade caminha rumo a novas formas de morar e viver nas cidades. Urge um novo paradigma para que sejam viabilizadas políticas públicas que levem em conta a diversidade etária, favorecendo o diálogo intergeracional. Um paradigma em que os idosos serão valorizados e os espaços terão configurações que lhes proporcionem segurança e estimulem a química do corpo e do afeto. A tecnologia poderá ser uma aliada, trazendo ganho tanto em nível material quanto de saúde. Sensores, aplicativos, comandos digitais e robôs serão agentes de promoção da saúde, do bem-estar, da economia, da autonomia e da superação social do longevo, que assim poderá estar menos sujeito às limitações físicas impostas pelo tempo.
            De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/PNAD – IBGE de 2015, a maior parte da população brasileira, 84,72%, vive em áreas urbanas, e 15,28%, em áreas rurais. A região Sudeste detém o maior percentual de população urbana – 93,14%. Já a região Nordeste conta com o maior percentual de habitantes em áreas rurais – 26,88%. A cidade é o lugar de grande fluxo populacional caracterizado por um embate socioespacial que demanda uma revisão de formato e de gestão pública. As cidades precisam acompanhar a realidade sociodemográfica e as necessidades de um perfil populacional em transformação acelerada.
            O corpo do longevo, o corpo da moradia e o corpo da cidade devem se reconfigurar em um processo de simbiose dinâmico na busca de um envelhecimento ativo. A atuação do corpo protagonista se dá quando ele reconhece o seu sentido particular em interação com o particular do outro. Um posicionamento social que estabelece uma política de alteridade que retrata o diverso no particular. O protagonismo no seio da sociedade surge como a representação da cultura do todo a partir de um ativismo localizado que torna o território permeável, propiciando a comunicação entre todos os elementos da cadeia social. Trata-se da circulação constante de afetos sociais, de escutas que possam alimentar o bom funcionamento dos corpos fragilizados pelo tempo e pela solidão de toda a população em processo de envelhecimento. A escuta como elemento que cadencia o fluxo do tempo, ressignificando o sentido da existência. Um insumo para a conscientização e a potencialização das pessoas que envelhecem. Uma população que está vivendo cada vez mais. Segundo o IBGE, a expectativa de vida era de 45,5 anos, em 1940; de 52,5 anos, em 1960; de 69,8 anos, em 2000; e em 2017, de 76 anos.
            Tem-se, assim, uma geografia, um mapa afetivo articulado, no qual se processará a dinâmica do envelhecimento. Que avança a cada conquista etária, estando presente ao longo da produção e renovação da memória individual e social. A memória se materializa através do corpo longevo e de seu habitat: a arquitetura e o espaço urbano, nos quais ele produz cultura e afeto. Ela se expande com o exercício de mobilidade que demarca a rede dos três corpos que constituem o universo social. Uma rede que demanda a otimização da principal artéria da cidade: a calçada, tão mal planejada e cuidada pelo poder público e pela população em geral, ocasionando frequentes quedas às pessoas da terceira idade. Artéria que deveria proporcionar boas condições de caminhabilidade e o exercício pleno de cidadania.
            Podemos nos reportar ao que diz o neurocientista Roberto Lent sobre o conceito de neuroplasticidade, na obra O cérebro aprendiz – neuroplasticidade e educação (2019): “A neuroplasticidade pode ser definida como a propriedade que todos os sistemas neurais têm de modificar-se dinamicamente na interação com o meio ambiente.” (p. 15). A neuroplasticidade se materializa no âmbito da arquitetura e da cidade como uma neuroarquitetura, um neurourbanismo, repleta de ressignificações a serem efetivadas por parte do usuário no processo de aquisição de saúde e consciência social. A mobilidade, como fator que desencadeia a otimização da relação entre a moradia e a cidade, aparece como insumo para a manutenção da memória, da saúde. É uma política de prevenção, diante dos déficits acumulados no decorrer da vida, com o objetivo de ganho de capacidade funcional e de um envelhecimento ativo.
            O peso do tempo no corpo longevo imprime um ritmo e um desejo próprios. Cabe à arquitetura e à cidade permitir ao idoso o exercício do tempo decorrido, estimulando-lhe o corpo por meio da mobilidade, segurança, acessibilidade e afeto. O corpo e a memória precisam ser provocados, instigados, para produzir releituras temporais que possam conservar a vitalidade em uma etapa da vida repleta de memórias individuais e sociais. Um corpo vivo em interlocução com uma arquitetura e uma cidade vivas. Uma cidade viva à procura de apropriação social, como declara o arquiteto e urbanista Jan Gehl em sua obra Cidade para pessoas (2013): “Mas o que a cidade viva realmente precisa é uma combinação de espaços públicos bons e convidativos e certa massa crítica de pessoas que queira utilizá-los” (p. 68). Ou seja, um uso otimizado, em que o planejamento urbano tenha em vista a dimensão humana (etária). Dessa forma, a memória pode ser articulada com as diversas experiências que o longevo adquire em seu cotidiano. Uma memória que caminha ao lado do respectivo esquecimento, em um processo dinâmico de abertura do olhar perante a vida. Ela deve, portanto, ser tratada como política de saúde e de cultura em uma sociedade que aspira a uma nova ética social, para a qual o arquiteto e o urbanista podem contribuir com a criação de projetos socioespaciais. 
            No Código de Ética e Disciplina (2013) do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), em seu tópico 2 “Obrigações para com o interesse público”, consta a seguinte recomendação: "2.3.3. O arquiteto e urbanista deve envidar esforços para assegurar o atendimento das necessidades humanas referentes à funcionalidade, à economicidade, à durabilidade, ao conforto, à higiene e à acessibilidade dos ambientes construídos". É, portanto, função social do arquiteto e urbanista promover a revisão e a construção dos diversos espaços da experiência humana ao longo do tempo. Olhar para o passado e para o futuro integra a dinâmica e a responsabilidade do exercício técnico e social efetivo do arquiteto e do urbanista na cena contemporânea.

Espaços da boa longevidade: um processo em construção

            A cidade avança aos poucos na garantia de qualidade de vida ao longevo em seu cotidiano. É preciso direcionar a atenção para a geração baby boom, os nascidos entre 1946 e 1964, hoje na faixa dos 55 a 73 anos. Essa geração é que está começando a vivenciar um processo impactante no que diz respeito ao questionamento e à reestruturação do universo socioespacial. Novos tipos de espaços, equipamentos, serviços e condutas devem surgir para dar conta do envelhecimento progressivo da população.
            Na cidade do Rio de Janeiro, as cerca de 185 academias da terceira idade/ATIs, implantadas nas praças a partir de 2011, são equipamentos públicos que contribuem para aumentar a vitalidade do corpo e a sociabilidade. É uma vitrine em espaço público, na qual o longevo assume as marcas do tempo, exercitando-se para ganhar um novo corpo social. As sete casas de convivência municipais, ainda em quantidade insatisfatória, são espaços públicos de integração entre os usuários e de aprimoramento físico e cognitivo que trazem grandes benefícios ao idoso. Nesses locais, uma espécie de clube sênior, a intimidade dos detentores do tempo aflora eventualmente, prevalecendo o privado, que se resguarda de uma assistência já assumida, mas ainda não exposta publicamente.
            Ainda em fase de implantação, no Estado do Rio de Janeiro, o primeiro cohousing sênior, com base no conceito da sociocracia, segundo o qual as decisões a serem tomadas resultam da opinião dos participantes do grupo. No sistema sociocrata, o grupo funciona como um organismo vivo, em constante processo opinativo e de decisão. Uma gestão de compartilhamento permanente de espaços, ações, funções e afetos na perspectiva de uma comunicação não violenta. A primeira cohousing multigeracional foi criada na Dinamarca, em 1972. O espaço privado (casa ou apartamento de cerca de 50 m² em média) de cada morador se situa em uma "aldeia contemporânea", um terreno no qual o espaço coletivo (lavanderia, cozinha, lazer) serve como elemento agregador da comunidade. Uma nova forma de viver e lidar com a realidade do tempo presente em um corpo individual e social em transformação.
            O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 01/10/2003), em seu artigo 38, determina que nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, o idoso goze de prioridade na aquisição de imóvel para moradia própria, observando o seguinte (Leis nº 12.418/2011 e 12.419/2011): "I – reserva de pelo menos 3% (três por cento) das unidades habitacionais residenciais para atendimento aos idosos; II – implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso; III – eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso; IV – critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão; e parágrafo único: as unidades residenciais reservadas para atendimento a idosos devem situar-se, preferencialmente, no pavimento térreo". Pode-se considerar um avanço, mas ainda em percentual de reserva insuficiente, diante do número cada vez maior dessa população. Na recente V Conferência Estadual dos Direitos da Pessoa Idosa do Rio de Janeiro, foi recomendada a reserva, aos idosos, de pelo menos 6% (seis por cento) das unidades habitacionais residenciais do programa Minha Casa Minha Vida. Uma demanda vinda da mobilização e da realidade do segmento social em questão.
            Por iniciativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro, foi inaugurada em 2012 a Vila da Melhor Idade, o primeiro conjunto público para a terceira idade, em Santa Cruz. Atendendo a idosos com renda de até dois salários mínimos, esse conjunto compõe-se de 30 casas de 49 m² e é assistido por um centro de convivência de 192 m². Segundo informações, estão previstas mais duas vilas: em Conceição de Macabu, com 30 unidades, e em Volta Redonda, com 42 unidades. Um projeto de pouca visibilidade e ainda em fase inicial de implantação.
            Vale lembrar o pioneirismo do Hospital Estadual Eduardo Rabello/HEER, em Campo Grande, Rio de Janeiro, que foi inaugurado em 17 de novembro de 1973, como o primeiro hospital geriátrico planejado e construído no Brasil, referência na América do Sul. Com um terreno de 42.600 m² e área construída de 13.292 m², o HEER oferece 120 leitos, sendo 75 ativos e oito leitos na UTI. O Centro Dia, fora do corpo principal do hospital, é um setor de excelência, que tem como objetivo prestar serviços médicos, ocupacionais e artísticos à comunidade. Um equipamento hospitalar que se encontra, infelizmente, em estado precário, o que prejudica a assistência à população longeva fluminense. Um próprio estadual que merece atenção e reconhecimento enquanto patrimônio público.
            Apesar de algumas melhorias, barreiras arquitetônicas e urbanísticas impedem que o longevo usufrua de um cotidiano ativo. Tais barreiras são decorrentes da falta de eficiência da gestão pública e da necessidade de um redimensionamento, por parte da sociedade, em relação à vida da população idosa. O desenho universal é uma ferramenta necessária à superação do estado atual de nossos espaços sociais, tão desorientados e degradados.
            A esse propósito, conta-se com o suporte da legislação, através do Decreto-lei nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, que regulamentou as Leis nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e estabeleceu normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade. O capítulo II – art. 8º - IX – versa sobre o desenho universal: concepção de espaços, artefatos e produtos que visam a atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que compõem a acessibilidade. A Norma Brasileira nº 9.050, de 2004, apresenta as especificações do desenho universal, com critérios e parâmetros técnicos para construção, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos e, também, para a instalação e adaptação de edificações.
            A reflexão e os conceitos apresentados neste artigo orientam o projeto “A moradia e a cidade na vida do idoso”, sob minha coordenação e desenvolvido na Universidade Aberta da Terceira Idade/UnATI, que integra a Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. A UnATI iniciou suas atividades em agosto de 1993 como um programa direcionado à população acima dos 60 anos, proporcionando atividades gratuitas a todas as classes sociais. O objetivo do programa é contribuir para a melhoria das condições de saúde física, mental e social da população idosa, sendo concebido e gerido pelo quadro técnico e científico da universidade. A UnATI dispõe de um centro de convivência, que oferece uma grande variedade de cursos e oficinas livres por ano, bem frequentados e reconhecidos nacionalmente .
            O projeto “A moradia e a cidade na vida do idoso”, realizado no Centro de Convivência, mantém desde 2018, como atividade principal, uma oficina sob a mesma denominação, que mostra o estado atual da moradia e da cidade em que vive o idoso, tanto no Brasil como no mundo. As condicionantes físicas, legais, sociais, culturais e econômicas são objeto de investigação para se diagnosticar o impacto na saúde e propor iniciativas que possam melhorar o cotidiano do idoso. A metodologia da oficina (um laboratório sênior) consiste na apresentação de textos, informações e cases, pontuada por uma escuta cuidadosa dos participantes e seguida do respectivo debate. A escuta é um elemento disseminador de afetos e demandas sociais. São ainda efetuadas visitas técnicas aos equipamentos especializados e a outros projetos socioculturais que possam ampliar o conhecimento e a visibilidade sobre o tema da oficina.
            A oficina desenvolve duas atividades paralelas abertas ao público em geral: os ciclos de palestras “Moradias: relatos da maturidade” e o “Cidades: caminhos para a longevidade”. Na primeira são apresentados trabalhos de profissionais brasileiros longevos e de renome nas áreas da cultura, ciência e moradia; já na segunda, os trabalhos são de profissionais das mais diversas faixas etárias, com atuação marcante nas áreas da cultura, ciência e cidade. Essas atividades funcionam como lugar de interlocução entre os participantes da oficina, os profissionais em destaque e o público em geral.
            Os integrantes da oficina e das atividades paralelas têm demonstrado interesse em conhecer as várias possibilidades de moradia para a terceira idade e o que o espaço urbano deve apresentar para o exercício de um envelhecimento ativo. O acesso às informações e o consequente desenvolvimento de um olhar crítico em relação à própria vida têm proporcionado aos participantes um aprendizado de como bem viver e intervir na realidade social. É um projeto que visa a influir na formação do longevo, incentivando-o a usufruir dessa fase da vida com mais independência, informação, aceitação da passagem do tempo e valorização de seu acervo biográfico.
            O Estado do Rio de Janeiro ainda não tem projetos de maior envergadura no tocante à formulação e à implementação de políticas públicas que possam levar a população idosa à conquista de mais qualidade de vida dentro dos protocolos (certificações) internacionais, como, por exemplo, o "Cidade amiga do idoso", um projeto da Organização Mundial de Saúde/OMS (2008). Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde/OAS, da OMS, existem 847 dessas cidades e comunidades em 41 países que fazem parte da rede global. No Brasil, apenas seis cidades integram a rede: Jaguariúna, em São Paulo; Pato Branco, no Paraná; Balneário Camboriú, em Santa Catarina; e Esteio, Veranópolis e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
            Os projetos de moradia e espaço urbano, para se tornarem geradores de Cidades Amigas do Idoso: Cidades do Bom Longeviver, devem levar em conta as questões de transporte, interação social, respeito e inclusão social, participação cívica e emprego, apoio comunitário e serviços de saúde, bem como comunicação e informação. Caminhamos de forma pouco integrada, mas temos numerosas iniciativas importantes que podem delinear políticas públicas que venham a contribuir para um desenvolvimento social compatível com a nova realidade demográfica brasileira. Precisamos fazer parte do acervo de iniciativas reconhecidas, tais como: Cidade Madura, na Paraíba; Vila dos Idosos e Palacete dos Artistas, em São Paulo; República de Idosos, em Santos; dentre outras iniciativas públicas e privadas nacionais.
            Vale destacar, também, a Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa/EBAPI, instituída em 3 de abril de 2018 pelo Governo Federal, através do antigo Ministério de Desenvolvimento Social e atual Ministério da Cidadania. Trata-se de um programa de certificação nacional, concedido aos municípios e comunidades brasileiros que promovam o envelhecimento ativo, saudável, cidadão e sustentável da população idosa. Até agosto de 2019, foram registradas 438 adesões de municípios brasileiros, mas apenas seis dentre os 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro.
            O projeto urbano para uma longevidade saudável se enquadra no conceito de resiliência, que se orienta no sentido de um futuro amigável. Na obra Outra economia é possível – cultura e economia em tempos de crise (2019), organizado por Manuel Castells, Sarah Pink e Kirsten Seale comentam: “Os tipos de resiliência nos quais estamos interessados envolvem modos de cuidado, responsabilidade, voluntariado, hospitalidade e sociabilidade, bem como as formas de bem-estar que isso gera” (p. 217). Pensar em termos de qualidade de vida sustentável no espaço urbano em 2060, por exemplo, é ter que levar em conta os 32,2% de longevos da população do país. E o percurso do envelhecimento populacional em busca de um futuro promissor será marcado por um processo de resiliência, engendrado por uma política social voltada ao cuidado do cidadão brasileiro.
            Vivemos um momento histórico no qual o caminho a ser trilhado deve ser em direção aos ideais de uma Cidade para Pessoas, uma cidade para a boa longevidade, uma cidade que nos faça caminhar, sorrir e nos encantar com nossas memórias.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Patrimônio Cultural











Ensaio de uma ética do reuso patrimonial


            Ouvir o silêncio de uma obra arquitetônica requer, de quem ousa a essa anamnese de um corpo reconhecido historicamente, um olhar que se volte ao contexto mental e a visão de mundo de uma determinada sociedade em suas expressões artísticas e técnicas. Trata-se de um exercício de testemunho do processo de criação de memórias na atualização do passado. A cultura patrimonial produzida e reconduzida ao longo do tempo tem sua morfologia, uso e fluxo de usuários desafiados sempre pelo tempo presente. O presente é o condutor do olhar que desbrava as diversas camadas de um percurso histórico que acumula verdades e invenções. Sob o ponto de vista da história das teorias e das formas urbanas e arquitetônicas, Françoise Choay comenta: “O monumento tem por finalidade fazer reviver um passado mergulhado no tempo”. E a função, ou a nova função, que se dá a essa obra arquitetônica e urbanística deve nos fazer lembrar de um passado, em processo de constante atualização, mas entranhado no tempo presente. Um passado materializado em um corpo edificado e que foi reconhecido por seu valor histórico, estético ou social.
             A obra patrimonial tem um valor em si independente do uso original ou de um reuso instituído pelos detentores da técnica e pelos gestores sociais. Ela transcende a mera utilização de seu espaço, mas pode ser enaltecida com o que eu denomino de “uso do pertencimento”, uma função ou uma nova função que potencialize a morfologia, a Gestalt e o fluxo humano da obra em questão. Temos, assim, a deflagração de uma Ética na obra arquitetônica e urbanística no momento que, a partir de um processo antropológico do espaço, conquistamos o silêncio, o estado de potência patrimonial. É o momento que nos tornamos testemunhas dos rastros da fonte criadora que chegam ao tempo presente. E como comenta Choay em relação à natureza do monumento: “Sua relação com o tempo vivido e com a memória, ou, dito, de outra forma, sua função antropológica, constitui a essência do monumento.” Acessar o tempo antropológico da arquitetura e do urbanismo significa dar início a um processo de sustentação do valor histórico e estético em suas respectivas atualizações e adequações quanto à manutenção da função original ou de aquisições de novos usos, no âmbito de um olhar sob a égide do “uso do pertencimento”.
            Estar atento ao “uso do pertencimento” não significa deixar de se ter a possibilidade de compatibilização da forma original a um uso considerado distante (ou exótico) de sua primeira função. A experimentação própria do método antropológico nos faz rever e descobrir novos usos adequados a um contexto sociocultural mais urgente ao tempo presente. E experimentar e nomear novos usos no percurso histórico da obra patrimonial é instituir a dinâmica do procedimento ético no cotidiano da sociedade. É realizar o exercício de uma retrospectiva da ocupação histórica na perspectiva de tornar a história viva e afeta aos anseios sociais.
            Na busca de uma nova subjetividade pós-moderna, Rosi Braidotti comenta sobre a importância da escala da micropolítica em ações específicas da cultura local: “A ética é uma questão de experimentação, não de controle por meio de técnicas sociais de alienação.” O pertencimento é dinâmico, mas coerente com a natureza da obra em sua necessidade de ser objeto de apropriação técnica e social sustentável. A linha do tempo de um patrimônio em processo de contextualização nos faz ter que experimentar novas ações que não o tornem um objeto alienado, um arquivo morto. A prática da micropolítica em um contexto de ressignificação de um espaço arquitetônico e urbanístico conduz à descobertas de novas demandas sociais e funcionais que poderão estar integradas às características físicas e estéticas da obra em processo de requalificação.
            A requalificação decorrente das acomodações da cidade ao longo do processo de embate entre memória e esquecimento no qual ocorrem ações de preservação e criação de novas arquiteturas dentro da malha urbana, é materializado no que Choay denomina de “competência de edificar”, um investimento de trabalho que é retomado a cada geração. Uma retomada necessária à manutenção e a atualização do patrimônio diante de novos contextos mentais, materiais, políticos e econômicos. A visão de mundo é materializada através de formas que são o retrato da sociedade em seu processo de capitalização social. A “competência de edificar” é o poder de segurar o tempo frente à realidade entrópica que nos vigia e ameaça.
            Uma ação ética profissional sob o ponto de vista da “competência de edificar” aparece como uma iniciativa (ou uma metodologia) de formação de vínculos simbólicos (culturais) com vistas à construção de comunidades sustentáveis agregadoras de valores socioculturais e espirituais. A dimensão do caráter sustentável na arquitetura e no urbanismo nada mais é do que considerar a materialização do espírito do tempo em um projeto que demarque a criatividade e a emoção em ações de políticas públicas que atualizem a organização social. Ações essas que estão no território das micropolíticas da arquitetura e do urbanismo locais no qual devemos garimpar e estabelecer os verdadeiros vínculos criativos de novas técnicas e usos. Ou fazer retornar antigos procedimentos vítimas de um processo de higienização feroz da memória social. Trata-se de uma política do âmbito do ativismo cultural que reverencia a emoção (o silêncio) perante a obra e os seus usuários.
            De que forma poderemos implantar um projeto de reuso que atenda ao momento social, técnico e econômico de uma determinada localidade? De acordo com Choay: “A prática de reutilização deveria ser objeto de uma pedagogia especial.” Uma pedagogia que situe a materialidade da obra, a técnica e o reuso em um contexto social no qual possa convergir o patrimônio cultural (a indústria patrimonial) e o mercado, mais especificamente, o do turismo. Uma prática política de conciliação entre a vitalidade artística do patrimônio e o seu engajamento socioeconômico. E ainda, segundo Choay: “A indústria patrimonial, enxertada em práticas com vocação pedagógica e democrática não lucrativa, foi lançada inicialmente a fundo perdido, na perspectiva e na hipótese do desenvolvimento e do turismo.” O turismo, enquanto força econômica, tem-se mostrado em alguns momentos predatório em relação à preservação do patrimônio e à rentabilidade do próprio reuso que pode causar a descaracterização de um formato funcional sustentável. Vemos surgir réplicas de obras arquitetônicas e arqueológicas (“clones culturais”) que passam a ser os espaços de uso ao público em substituição às obras originais que ficam intocadas (museificadas), afastadas das forças de um turismo selvagem. A pedagogia negada alimenta uma cidade em alta velocidade e com déficit de afetos comunitários. E a pedagogia assumida é o elixir da Política de Maquiavel.
            Tentativas de reuso que são simbólicas de uma sociedade estrangeira de si mesma é o caso do Hotel Glória, projeto neoclássico do arquiteto francês Joseph Gire inaugurado em paralelo à Exposição Internacional de 1922. Em ruínas desde o seu fechamento em 2008, decorrente dos desvios éticos e políticos tão em voga, o hotel pode nos remeter ao velho navio encalhado em uma praia lusitana do filme brasileiro “Terra Estrangeira” do ano de 1995 de Walter Salles e Daniela Thomas. As grandes navegações deixaram seus rastros no Brasil e em Portugal. Um velho navio à deriva, uma arquitetura de uma cidade “maravilhosa” à deriva. Os mesmos confiscos de identidade e econômicos desse cinema da retomada nos fazem presenciar arquiteturas e uma cidade ainda deslocadas do seu real pertencimento sociocultural. Pedagogias especiais precisam estar à vista no inventário da história das arquiteturas e das cidades brasileiras.


terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Direção de Arte









A criação do visual do filme: reflexões sobre direção de arte


 

A imagem nos dias de hoje é um poderoso símbolo cultural, psicológico e estético, que estimula a produção imaginária do conjunto da sociedade. Em um sentido psicossocial, a imagem – do cinema, da televisão ou do próprio cotidiano da vida urbana – é uma projeção de nosso universo interno. Trabalhar com ela é conectar-se com o imaginário social e cultural, pois ela é capaz de deflagrar símbolos que permitirão a expansão do pensamento, fazendo emergir novas percepções e sentimentos. O homem se desenvolve através de estímulos, e nada melhor que a obra cinematográfica para despertar, em seu interior, questões fundamentais para o aperfeiçoamento individual e social.

O trabalho com a direção de arte se realiza a partir da dramatização do objeto, da inflexão (entonação) dos diversos elementos que participam da produção cinematográfica. Esse processo valoriza e contextualiza uma idéia através das diversas formas que criam vida no enredo em desenvolvimento. Cada um desses elementos contribui para o acabamento da obra, e o importante é que o espectador perceba a função de cada objeto, de cada atitude. A posição, a forma, a intenção e a cor do objeto, assim como o ator (a caracterização dos personagens) e o próprio espaço precisam estar sintonizados na trama audiovisual. É necessário transmitir coerência, verdade, criatividade e emoção. O espaço como um todo, envolvendo locações e cenários adequados e o entrosamento entre seus componentes, deve constituir uma poética que leve o observador a absorver o conteúdo da história. O processo artístico só se estabelece quando há assimilação afetiva do objeto e do espaço. Dá-se, segundo Jean-Claude Bernardet, uma “construção de conexões”, um momento de aprofundamento do sentido e da natureza da relação do espectador com a obra cinematográfica.

A constituição de conexões já faz parte da própria cultura do cinema. O diálogo entre o espaço e o tempo estrutura a sua natureza. O cinema espacializa o tempo, ou seja, demarca na trama espaços de ação de diversos tempos históricos. A arquitetura, como elemento da ambientação da história (espaço de locações), é uma arte dinamizadora do espaço e, conseqüentemente, do tempo desse espaço. A escolha das locações de um filme vem a ser uma cor da obra cinematográfica, conforme explica o diretor Sidney Lumet: “Um resultado natural da cuidadosa seleção de locação é que quase sempre criamos uma palheta de cor para um filme”. O espaço, então, apresenta uma determinada cor que define uma época em suas especificidades psicológicas e sociais.

Assim, a produção da imagem no cinema se dá com base em uma estratégia psicológica que possa criar uma atmosfera com sentido de “verdade”. A esse respeito comenta o diretor de arte Marcos Flaksman: “Cinema é mentira. Só que para mentir corretamente o profissional tem que saber exatamente como é de verdade”. A simulação da realidade, apoiada em um conhecimento histórico e cultural, tem que ser convincente para quem assiste ao filme, propiciando uma recepção reveladora que justifique a presença do espectador na sala de exibição. Deve ser, enfim, um processo artístico coerente que o induza a uma viagem imaginária.

A direção de arte busca um entrosamento entre o cenário, as locações, os efeitos especiais, o figurino, o cabelo, o gestual, a fala, a maquiagem, a iluminação e a cor, de modo a dar vida a uma idéia que deverá sensibilizar e transformar o espectador. Segundo Lumet, “junto com a câmera, a direção de arte (os cenários) e o guarda-roupa são os elementos mais importantes na criação do estilo – em outras palavras, do visual – do filme”. A maneira de filmar – ou seja, o uso de determinados tipos de lentes e filtros, a iluminação, a posição e o movimento da câmera – compõe com os outros elementos de criação artística um desenho de produção que irá transmitir o tema do filme. Toda contribuição técnica e estética deve desenvolver, enriquecer e evidenciar o tema da trama cinematográfica.

A imagem do cinema tem uma função social: trazer luz a questões e acontecimentos que, muitas vezes, não nos é permitido perceber em nosso cotidiano. A intenção não é apenas provocar o desejo de apreender uma realidade que necessita de certo distanciamento para ser assimilada, mas também aproximar o universo do indivíduo de uma cena imaginária que transmite estímulos e códigos tanto de uma cultura particular quanto da visão de um diretor.

O quadro de imagem do cinema só terá uma direção de arte representativa quando configurar o papel de um pintor que dá pinceladas em determinadas áreas da tela para imprimir vida e significado a uma obra. Podemos associar a arte do pintor com a técnica de storyboard, usada pelo profissional na elaboração de uma seqüência de desenhos das principais cenas do filme para planejar e definir sua técnica e estética. Por ser uma “obra fechada”, o cinema tem a possibilidade de formular melhor a estratégia de planejamento da produção.

Para o crítico e teórico de cinema André Bazin, o quadro de imagem é uma janela aberta para o mundo, um fragmento da realidade. Uma potencialização entre os elementos técnicos e estéticos desse quadro proporcionará ao espectador uma ampliação de sua visão narrativa. Para tanto, a intuição, a criatividade, a técnica e o conhecimento precisam ser desenvolvidos e utilizados pelo profissional do departamento de arte para dar forma a uma época, a um contexto, explorando sentimentos e pensamentos de determinado indivíduo e grupo social, no intuito de construir ou recompor um universo sociocultural – o clima de uma época – com um perfil psicológico específico do espaço e dos personagens. Não se pode deixar de ressaltar que todas as aptidões a serem desenvolvidas não devem estar dissociadas da realidade orçamentária da produção. A pressão orçamentária se evidencia no trabalho criativo, tanto em seu plano técnico como estético.

A direção de arte se estabelece tendo por princípio a idéia de justificativa, ou seja, ela exerce um papel que justifica cada escolha a partir de uma perspectiva histórica, cultural, psicológica ou estética. O projeto de arte se estrutura por um conceito (espaço, tempo, textura, cor, luz, ...) expresso em cada segmento da obra cinematográfica. Outro papel importante é o de colaborar para que o espectador possa ver – e não só olhar – a obra audiovisual, o que lhe permite atravessar a estrutura objetiva em direção a uma subjetividade, ao espírito de uma idéia e de um fato. Com seu trabalho, o diretor de arte pode contribuir para o processo de educação dos sentidos e para o aprimoramento da sensibilidade do homem em relação ao seu universo social. A arte no cinema representa um ato de afirmação da identidade de uma época, promovendo o enriquecimento da vida do homem contemporâneo.