Uma
cobertura no bairro de Ipanema, na Rua Barão da Torre, 42, onde o silêncio era
um espírito encantador de palavras que se movimentavam por entre folhas,
flores, frutas e pássaros. Nesse cenário paradisíaco, uma reprodução da
bucólica Cachoeiro de Itapemirim, concebida pelo paisagista Burle Marx e pelo
arquiteto Sergio Bernardes, o jornalista e cronista Rubem Braga reverenciava a
natureza e as palavras em tom confessional. Um homem recatado, misterioso, mas
que o amigo e, também, cronista, o erudito Paulo Mendes Campos comentou:
“Descobri o que você é. Você é um fazendeiro do ar”.
Rubem
Braga deve estar querendo romper com sua solidão diante da exposição “Rubem
Braga: o fazendeiro do ar”, sob a curadoria do escritor, jornalista e cronista
Joaquim Ferreira dos Santos, que esteve em cartaz no Galpão das Artes Espaço
Tom Jobim, em pleno Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 2014. Uma exposição
comemorativa do centenário de seu nascimento: uma homenagem a um jornalista brasileiro
(Braga não se considerava um escritor) que produziu cerca de 15 mil crônicas
nos seus 62 anos de intensa criação e fascínio pela vida, pela natureza. Uma
declaração de amor à arte da crônica: às “pequenas pilhas de palavras” assim
denominadas pelo jornalista capixaba. Tom Jobim e Rubem Braga provavelmente
estão costurando parcerias: sinfonias que nos farão vivenciar palavras e sons
embalados pelo afago do ar. As palavras do jornalista irão nos abalar até as
entranhas. Ai de todos nós! Ai de ti, Jobim! Ai de ti, Copacabana!
A
exposição conduz o visitante a um percurso demarcado pelos seguintes módulos: “Retratos”
– registros fotográficos de várias épocas da vida de Rubem Braga; “Capital
secreta do mundo” – a memória da infância em Cachoeiro de Itapemirim; “Redações”
– onde ele atuou como redator, repórter político e de artes plásticas em vários
jornais; “Guerra” - como correspondente nos campos da Itália; “Cobertura” - a
casa mitológica na qual a natureza reproduz o paraíso de sua terra natal; e “Passarinhos”
- a vivência com as grandes paixões da vida do cronista. Uma memória que é
revisitada pelo embate entre o real e o imaginário expresso em suas crônicas
que, segundo José Castello: “Um cronista, por fim, é isso mesmo: lida com
realidades mínimas, sentimentos imperceptíveis, arranca suas histórias de um
quase nada”. Enfim, a terra materializa em comunhão com o ar o suspiro da
criação.
A
concepção cenográfica da exposição foi idealizada pelo arquiteto e designer de
exposições e museus, Felipe Tassara, que procura apresentar o sujeito e
jornalista Rubem Braga materializados através de uma memória visual e afetiva
pontuadas por textos, documentos, fotografias, desenhos, pinturas, objetos, publicações
e depoimentos em vídeos que aparecem ao longo dos diversos módulos.
Em
um primeiro momento, o visitante se depara com um jogo de retratos 3x4 de Rubem
Braga que apresenta as nuances das diversas fisionomias que o cronista expressou
ao longo tempo. Um formato em tom noir que
lembra as famosas séries de retratos de Andy Warhol: a celebração de um
cronista brasileiro por bem mais de 15 minutos. Um exercício do olhar para quem
vai adentrar um mundo ainda não conhecido: uma possibilidade de se percorrer o
real rumo ao imaginário. Um universo de crônicas a ser desvelado a partir da
produção inicial de José de Alencar, Machado de Assis e João do Rio que marcou
o gênero. Afinal, como era a vida do cronista que tinha como matéria-prima as
histórias contadas e vividas por pessoas comuns?
“Capital
secreta do mundo” é desenhada a partir de 10 caixas suspensas (cubos em alturas
diferentes) contendo textos e fotos. As caixas aparecem como depositárias da
memória de infância de Braga nas quais o visitante é levado a ter uma
proximidade física e temporal com um passado formador de uma expressão de vida.
O revestimento em espelho no interior das caixas faz reverberar conteúdos que
repercutem na percepção de quem busca a origem do homem e do artista: de um
lugar (de uma aldeia) de geração de sensibilidades para o mundo. Joaquim
Ferreira dos Santos comenta: “Ele partiu do princípio dos mestres, a de que é
falando de sua aldeia que um escritor pode ser internacional”. A crônica de
Braga se tornou um clássico da cena do mundo global.
A
longa trajetória do cronista nas redações dos jornais desde o Correio do Sul
até o Estado de S. Paulo aparece demarcada em uma ambientação com reproduções
de diversos jornais nas paredes e no chão. O espaço é pontuado por 10 mesas de
trabalho que apresentam os temas: Espírito Santo, Revista Manchete, Diplomata,
O andarilho, Homem de televisão, Editor, Repórter, Escritor, Arte e O homem
Rubem Braga. Temas que refletem a experiência profissional e de vida de um
artífice da arte da crônica. Em cada mesa temos um iPad (que substitui a folha
de papel) acoplado à lendária máquina de escrever (a Hermes Baby de Braga) que
ao ser utilizada reproduz textos do cronista. Essa proposta cenográfica
simboliza uma atualização das antigas redações aos novos meios digitais. Mas
fica uma pergunta: teria a arte da crônica de hoje se atualizado em sua forma e
conteúdo diante das prerrogativas digitais?
A
prática de trabalho do cronista, além do uso manual da máquina de escrever, era
marcada pela presença da secretária Aracy Seljan (ex-cunhada), a “governanta
literária” Momy, que o acompanhou durante 48 anos, exercendo a função de copista
e revisora de seus textos. Uma função em extinção nos dias atuais: a
“governanta digital” hoje abraça a vida e o trabalho de nossos escritores, das
pessoas comuns que poderão sugerir temas para a confecção de crônicas
atemporais.
Aviões
de papel em origami no teto sobrevoam a sala do módulo “Guerra” que recria a
atmosfera da atuação de Braga como correspondente de guerra, no ano de 1944,
pelo Diário Carioca, na batalha de Monte Castelo, na Itália. Com o mesmo
tratamento nas paredes e no chão do módulo das “Redações” o espaço tem uma
grande mesa que abriga 10 telefones antigos, em estilo dos anos 40, que ao
serem tirados do gancho pelo visitante apresentam músicas, jingles, trechos de programas de rádio e noticiários do período da
2ª Guerra Mundial. Projeções na parede na altura de uma das cabeceiras da mesa
ilustram o período vivido pelo jornalista entre os combatentes de guerra que
resultou na publicação do livro de crônicas “Com a FEB na Itália”.
Sob
os aviões de papel passamos para “Passarinhos”: os “anjos da natureza” de Rubem
Braga. Um ornitólogo com estilo que soube escrever sobre o sabiá, bem-te-vi,
canário, corrupião, tuim, melro, curió, coleiro, papa-capim, bicudo e galo de
campina. Uma revoada de pássaros (também em origami) cobre o espaço com um chão
coberto de folhas secas. Sob uma sonoplastia de cantos de pássaros, o visitante
é levado a interagir com eles a partir da projeção de suas imagens em uma tela,
captada por uma câmera, que faz com que os pássaros pousem e brinquem nas mãos
dos visitantes. Um momento de interação lúdica e tecnológica em tempos de busca
de encantamento com a natureza. O formato digital recria a atmosfera vivida
pelo cronista em seu dia-a-dia de inspiração e exaltação da vida.
Um
cronista que confessa o seu amor pelos pássaros em seu primeiro livro, “O Conde
e o passarinho”, publicado no ano de 1936 pela Editora José Olympio: “Devo
confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um
passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa
preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe
gorjear nem voar ... O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem
fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é
gentil, ser um passarinho.” Ana Maria Machado diria que Braga vivia em estado
de “ternura recôndita” permanente.
Por fim, temos a cobertura de Rubem
Braga ambientada por uma fotografia panorâmica dos arredores de Ipanema nas
paredes do espaço; pinturas de Dorival Caymmi e Clóvis Graciano e desenhos de
Carlos Scliar, Cândido Portinari e Carybé retratam o cronista; fotografias de
Paulo Garcez registram os encontros com os amigos; réplicas de móveis da
cobertura e duas grandes mesas de centro que apresentam vídeos com depoimentos memoráveis
de Ziraldo, Zuenir Ventura, Ana Maria Machado, Danuza Leão, Fernanda Montenegro
e José Hugo Celidônio (com a ausência de sua paixão: a bela Maricota, a atriz Tônia
Carrero) e um Google earth que faz
uma associação alternada entre a localização da cobertura e a da casa de
nascimento do cronista. Todos esses elementos cenográficos sugerem o clima de
acolhimento que Braga tinha com a natureza e sua criação. Vinicius de Moraes
dizia: “Ele se exprime para dentro ... Parece estar sempre virado pelo avesso.”
Apesar do convívio com os amigos, Braga tinha uma vivência profunda consigo
mesmo, em um ambiente natural glorioso, pontuado pela produção de crônicas de
um lirismo poético coloquial tratando de cenas de nosso cotidiano. Vivia uma
vida intensa sob a égide de “Uma solidão muito cheia”, declarava ele próprio.
Uma cobertura silenciosa como
deveria ser a cidade que podemos reconhecer na crônica “As músicas de Deus”: “Em
toda grande cidade devia acontecer assim: de repente um apagamento de todas as
luzes para toda gente recordar a noite, o escuro, as estrelas e, mesmo, um
pouco, Deus”. O silêncio da crônica de Braga, um “budista que meditava em voz
alta”, parafraseando Manuel Bandeira, nos faz lembrar da necessidade da escuta
na emissão das palavras e dos gestos em nossos cotidianos reveladores de vida.
Só assim poderemos nos tornar passarinhos ...
Adorei o texto! Tive a sensação de estar andando pela exposição.
ResponderExcluirO espírito de Rubem Braga está entre nós!
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