segunda-feira, 13 de junho de 2016

Rubem Braga: o fazendeiro de crônicas e passarinhos





Uma cobertura no bairro de Ipanema, na Rua Barão da Torre, 42, onde o silêncio era um espírito encantador de palavras que se movimentavam por entre folhas, flores, frutas e pássaros. Nesse cenário paradisíaco, uma reprodução da bucólica Cachoeiro de Itapemirim, concebida pelo paisagista Burle Marx e pelo arquiteto Sergio Bernardes, o jornalista e cronista Rubem Braga reverenciava a natureza e as palavras em tom confessional. Um homem recatado, misterioso, mas que o amigo e, também, cronista, o erudito Paulo Mendes Campos comentou: “Descobri o que você é. Você é um fazendeiro do ar”.

Rubem Braga deve estar querendo romper com sua solidão diante da exposição “Rubem Braga: o fazendeiro do ar”, sob a curadoria do escritor, jornalista e cronista Joaquim Ferreira dos Santos, que esteve em cartaz no Galpão das Artes Espaço Tom Jobim, em pleno Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 2014. Uma exposição comemorativa do centenário de seu nascimento: uma homenagem a um jornalista brasileiro (Braga não se considerava um escritor) que produziu cerca de 15 mil crônicas nos seus 62 anos de intensa criação e fascínio pela vida, pela natureza. Uma declaração de amor à arte da crônica: às “pequenas pilhas de palavras” assim denominadas pelo jornalista capixaba. Tom Jobim e Rubem Braga provavelmente estão costurando parcerias: sinfonias que nos farão vivenciar palavras e sons embalados pelo afago do ar. As palavras do jornalista irão nos abalar até as entranhas. Ai de todos nós! Ai de ti, Jobim! Ai de ti, Copacabana!

A exposição conduz o visitante a um percurso demarcado pelos seguintes módulos: “Retratos” – registros fotográficos de várias épocas da vida de Rubem Braga; “Capital secreta do mundo” – a memória da infância em Cachoeiro de Itapemirim; “Redações” – onde ele atuou como redator, repórter político e de artes plásticas em vários jornais; “Guerra” - como correspondente nos campos da Itália; “Cobertura” - a casa mitológica na qual a natureza reproduz o paraíso de sua terra natal; e “Passarinhos” - a vivência com as grandes paixões da vida do cronista. Uma memória que é revisitada pelo embate entre o real e o imaginário expresso em suas crônicas que, segundo José Castello: “Um cronista, por fim, é isso mesmo: lida com realidades mínimas, sentimentos imperceptíveis, arranca suas histórias de um quase nada”. Enfim, a terra materializa em comunhão com o ar o suspiro da criação.

A concepção cenográfica da exposição foi idealizada pelo arquiteto e designer de exposições e museus, Felipe Tassara, que procura apresentar o sujeito e jornalista Rubem Braga materializados através de uma memória visual e afetiva pontuadas por textos, documentos, fotografias, desenhos, pinturas, objetos, publicações e depoimentos em vídeos que aparecem ao longo dos diversos módulos.

Em um primeiro momento, o visitante se depara com um jogo de retratos 3x4 de Rubem Braga que apresenta as nuances das diversas fisionomias que o cronista expressou ao longo tempo. Um formato em tom noir que lembra as famosas séries de retratos de Andy Warhol: a celebração de um cronista brasileiro por bem mais de 15 minutos. Um exercício do olhar para quem vai adentrar um mundo ainda não conhecido: uma possibilidade de se percorrer o real rumo ao imaginário. Um universo de crônicas a ser desvelado a partir da produção inicial de José de Alencar, Machado de Assis e João do Rio que marcou o gênero. Afinal, como era a vida do cronista que tinha como matéria-prima as histórias contadas e vividas por pessoas comuns?

“Capital secreta do mundo” é desenhada a partir de 10 caixas suspensas (cubos em alturas diferentes) contendo textos e fotos. As caixas aparecem como depositárias da memória de infância de Braga nas quais o visitante é levado a ter uma proximidade física e temporal com um passado formador de uma expressão de vida. O revestimento em espelho no interior das caixas faz reverberar conteúdos que repercutem na percepção de quem busca a origem do homem e do artista: de um lugar (de uma aldeia) de geração de sensibilidades para o mundo. Joaquim Ferreira dos Santos comenta: “Ele partiu do princípio dos mestres, a de que é falando de sua aldeia que um escritor pode ser internacional”. A crônica de Braga se tornou um clássico da cena do mundo global.

A longa trajetória do cronista nas redações dos jornais desde o Correio do Sul até o Estado de S. Paulo aparece demarcada em uma ambientação com reproduções de diversos jornais nas paredes e no chão. O espaço é pontuado por 10 mesas de trabalho que apresentam os temas: Espírito Santo, Revista Manchete, Diplomata, O andarilho, Homem de televisão, Editor, Repórter, Escritor, Arte e O homem Rubem Braga. Temas que refletem a experiência profissional e de vida de um artífice da arte da crônica. Em cada mesa temos um iPad (que substitui a folha de papel) acoplado à lendária máquina de escrever (a Hermes Baby de Braga) que ao ser utilizada reproduz textos do cronista. Essa proposta cenográfica simboliza uma atualização das antigas redações aos novos meios digitais. Mas fica uma pergunta: teria a arte da crônica de hoje se atualizado em sua forma e conteúdo diante das prerrogativas digitais?






A prática de trabalho do cronista, além do uso manual da máquina de escrever, era marcada pela presença da secretária Aracy Seljan (ex-cunhada), a “governanta literária” Momy, que o acompanhou durante 48 anos, exercendo a função de copista e revisora de seus textos. Uma função em extinção nos dias atuais: a “governanta digital” hoje abraça a vida e o trabalho de nossos escritores, das pessoas comuns que poderão sugerir temas para a confecção de crônicas atemporais.

Aviões de papel em origami no teto sobrevoam a sala do módulo “Guerra” que recria a atmosfera da atuação de Braga como correspondente de guerra, no ano de 1944, pelo Diário Carioca, na batalha de Monte Castelo, na Itália. Com o mesmo tratamento nas paredes e no chão do módulo das “Redações” o espaço tem uma grande mesa que abriga 10 telefones antigos, em estilo dos anos 40, que ao serem tirados do gancho pelo visitante apresentam músicas, jingles, trechos de programas de rádio e noticiários do período da 2ª Guerra Mundial. Projeções na parede na altura de uma das cabeceiras da mesa ilustram o período vivido pelo jornalista entre os combatentes de guerra que resultou na publicação do livro de crônicas “Com a FEB na Itália”. 

Sob os aviões de papel passamos para “Passarinhos”: os “anjos da natureza” de Rubem Braga. Um ornitólogo com estilo que soube escrever sobre o sabiá, bem-te-vi, canário, corrupião, tuim, melro, curió, coleiro, papa-capim, bicudo e galo de campina. Uma revoada de pássaros (também em origami) cobre o espaço com um chão coberto de folhas secas. Sob uma sonoplastia de cantos de pássaros, o visitante é levado a interagir com eles a partir da projeção de suas imagens em uma tela, captada por uma câmera, que faz com que os pássaros pousem e brinquem nas mãos dos visitantes. Um momento de interação lúdica e tecnológica em tempos de busca de encantamento com a natureza. O formato digital recria a atmosfera vivida pelo cronista em seu dia-a-dia de inspiração e exaltação da vida. 

Um cronista que confessa o seu amor pelos pássaros em seu primeiro livro, “O Conde e o passarinho”, publicado no ano de 1936 pela Editora José Olympio: “Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar ... O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.” Ana Maria Machado diria que Braga vivia em estado de “ternura recôndita” permanente.




          Por fim, temos a cobertura de Rubem Braga ambientada por uma fotografia panorâmica dos arredores de Ipanema nas paredes do espaço; pinturas de Dorival Caymmi e Clóvis Graciano e desenhos de Carlos Scliar, Cândido Portinari e Carybé retratam o cronista; fotografias de Paulo Garcez registram os encontros com os amigos; réplicas de móveis da cobertura e duas grandes mesas de centro que apresentam vídeos com depoimentos memoráveis de Ziraldo, Zuenir Ventura, Ana Maria Machado, Danuza Leão, Fernanda Montenegro e José Hugo Celidônio (com a ausência de sua paixão: a bela Maricota, a atriz Tônia Carrero) e um Google earth que faz uma associação alternada entre a localização da cobertura e a da casa de nascimento do cronista. Todos esses elementos cenográficos sugerem o clima de acolhimento que Braga tinha com a natureza e sua criação. Vinicius de Moraes dizia: “Ele se exprime para dentro ... Parece estar sempre virado pelo avesso.” Apesar do convívio com os amigos, Braga tinha uma vivência profunda consigo mesmo, em um ambiente natural glorioso, pontuado pela produção de crônicas de um lirismo poético coloquial tratando de cenas de nosso cotidiano. Vivia uma vida intensa sob a égide de “Uma solidão muito cheia”, declarava ele próprio.


        Uma cobertura silenciosa como deveria ser a cidade que podemos reconhecer na crônica “As músicas de Deus”: “Em toda grande cidade devia acontecer assim: de repente um apagamento de todas as luzes para toda gente recordar a noite, o escuro, as estrelas e, mesmo, um pouco, Deus”. O silêncio da crônica de Braga, um “budista que meditava em voz alta”, parafraseando Manuel Bandeira, nos faz lembrar da necessidade da escuta na emissão das palavras e dos gestos em nossos cotidianos reveladores de vida. Só assim poderemos nos tornar passarinhos ...




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