sábado, 25 de junho de 2016

As estações do Vermelho




 
Mark Rothko


Pintar é pensar, meditar sobre formas pictóricas que serão entregues ao olhar de quem aprecia o infinito de retângulos mergulhados em campos de cor. As delimitações da forma e da cor são impregnadas de conhecimento e especulações de um ponto de vista estritamente particular, o vermelho de cada observador. Afinal, “o que é Vermelho?”

Ao som de uma música clássica, as cortinas se abrem e temos Rothko diante da plateia personificado pelo ator Antonio Fagundes. Em uma caracterização marcada pelo desgaste do tempo, expressa em um corpo curvado com um ventre alto e sustentado por calças altivas que o colocam no lugar de um homem maduro, difícil e pensativo. Uma imagem potente que sugere ao espectador o tom do universo dramático de Vermelho, uma peça sobre os dilemas do olhar em uma sociedade marcada pela estética do espetáculo. O artista obcecado por um de seus murais provoca o seu novo assistente: “O que você vê?”

O processo criativo, a formação e as angústias de um artista da arte moderna – o russo Mark Rothko (1903-1970) - são o cerne da cena teatral apresentada pelo diretor Jorge Takla, a partir do texto “Vermelho” (Red) de John Logan, laureado com cinco prêmios Tony, sendo um deles o de melhor espetáculo.

O dramaturgo e roteirista norte-americano John Logan tem participado também de inúmeros projetos cinematográficos de sucesso: “Gladiador de Ridley Scott, “O aviador e “A invenção de Hugo Cabret de Martin Scorsese, “Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da rua Fleet de Tim Burton e “007 – Operação Skfall de Sam Mendes. Com a peça de teatro sobre Rothko, Logan diz: “Com Red eu estava interessado na passagem de uma geração e no relacionamento entre pais e filhos.” 

Rothko integra um grupo de artistas que constituiu o Expressionismo Abstrato (Escola de Nova Iorque), arte de ruptura dos padrões vigentes que se caracterizava pelo processo, pelos sentimentos produzidos no próprio ato da pintura. O artista instituiu a pintura de “campo de cor” onde a configuração da obra apresentava a força emocional da cor pura. 

A montagem em seu processo de criação de um texto teatral construído de forma clássica, que prima pelo próprio texto (discurso), pela palavra tornada potência dramatúrgica, convida o espectador ao exercício do olhar, a refletir sobre os dilemas da subjetividade do observador em um contexto histórico e estético no qual a arte está sob a égide da sociedade de consumo. Muitas das vezes, o objeto artístico é apenas um elemento de um espetáculo vazio, desprovido de significado social. Ficamos na espera de uma arte que possa ocupar o lugar de agente de conhecimento e superação do passado. As angústias de um artista de ego colossal diante de seu tempo se deparam com o dilema de que “um dia o preto vai engolir o vermelho”.

O rigor e a plasticidade do espetáculo de Takla se associam à intensidade das palavras do texto teatral de Logan, das formas e cores pictóricas de Rothko e de suas ideias e afetos que o tornam um artista constrangido com a lógica de uma sociedade de espetáculo voraz. A performance pictórica dos personagens Rothko e Ken (Bruno  Fagundes) constroem um quadro dramático onde cada movimento cênico constitui uma dinâmica na qual “cada pincelada (movimento) é parte de uma tragédia”. Uma tragédia onde contemplação, razão e emoção irão deflagrar uma tensão criadora. As entradas e as saídas de cena no atelier de Rothko, um velho galpão na 222 Bowery, Nova Iorque, são momentos de intensa carga dramática apresentando-se como uma partitura de tensões de ideias e de formas pictóricas. Os objetos cênicos (projeto de design de cenário concebido por Takla) se movimentam como se fossem pinceladas de um quadro a procura de uma forma que possa provocar o espectador. O projeto de design de luz criado por Ney Bonfante pontua a palheta de cores das telas e do cenário através de contrastes que criam um atrito no olhar. 

 



A peça retrata o período de 1958-59 (anos da fase denominada “anos do classicismo” na trajetória do artista) no qual Rothko trabalha na produção dos murais do restaurante Four Seasons, em Nova Iorque, no lendário Edifício Seagram (1958), um marco da arquitetura moderna projetado por Mies van der Rohe e Philip Johnson. A encomenda milionária torna-se o centro nevrálgico das inquietações do artista que oscila entre a cooptação a um projeto de mercado, onde os seus murais seriam objetos apenas de decoração e de luxúria, e a manutenção de uma presença romântica fidedigna ao seu ideário estético e político. Rothko fazia questão de ter controle absoluto tanto do lugar de suas obras quanto de quem as via. O observador precisava, segundo ele, se relacionar tanto de forma física quanto emocional com a obra de arte. No restaurante as pinturas seriam disputadas por movimentos, falas, goles, mastigações e sons inoportunos. O artista deveria ser autônomo como a própria arte (pintura): “deixa a pintura fazer o seu trabalho”, dizia ele. 

A relação de mestre (Rothko) e discípulo/assistente (Ken) - ou pai e filho -, mostram a importância do embate entre gerações, talentos e experiências de vida no reposicionamento diante de situações que comprometem a mente obcecada do artista. Rothko desiste da encomenda e devolve o dinheiro a partir de um processo de constantes questionamentos e, por fim, sob aplausos por parte de Ken. “Nada deve se interpor entre a minha pintura e o observador” pensava o artista. O preto não engoliu o vermelho, mas Rothko ficou mais pobre.

O espectador acompanha cada cena diante da técnica teatral empreendida para levá-lo a um lugar de possibilidades infinitas do olhar, da extensa gama de vermelhos vistos e ainda não vistos. O ritmo cênico pontuado por um discurso pertinente à cena contemporânea (talvez de um romantismo fora de época ou nunca existente diante de um mercado de arte selvagem) e o rigor plástico fazem do espectador um aliado do drama vivido pelo artista, pelos artistas imbuídos por um ideal. A experiência de uma geração, um momento artístico sob uma outra lógica, é explicitado na cena final na qual Rothko fala para Ken: “Quando eu tinha a sua idade, arte era uma coisa solitária: sem galerias, sem coleções, sem críticos, sem dinheiro. Nós não tínhamos mentores. Nós não tínhamos pais. Nós estávamos sozinhos. Mas era um grande tempo, porque nós não tínhamos nada a perder e uma visão a ganhar”.

A metamorfose do olhar diante do vermelho percorre mais do que as quatro estações de Vivaldi. Um olhar atento balbucia, mas não tarda a percorrer os caminhos do infinito diante dos campos de cor. O coração sente o que um olhar entregue conseguiu conquistar a partir de embates estéticos e éticos de um artista em processo de insurreição.

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