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Mark Rothko |
Pintar
é pensar, meditar sobre formas pictóricas que serão entregues ao olhar de quem
aprecia o infinito de retângulos mergulhados em campos de cor. As delimitações
da forma e da cor são impregnadas de conhecimento e especulações de um ponto de
vista estritamente particular, o vermelho de cada observador. Afinal, “o que é
Vermelho?”
Ao som de uma música clássica, as
cortinas se abrem e temos Rothko diante da plateia personificado pelo ator
Antonio Fagundes. Em uma caracterização marcada pelo desgaste do tempo,
expressa em um corpo curvado com um ventre alto e sustentado por calças altivas
que o colocam no lugar de um homem maduro, difícil e pensativo. Uma imagem
potente que sugere ao espectador o tom do universo dramático de Vermelho, uma
peça sobre os dilemas do olhar em uma sociedade marcada pela estética do
espetáculo. O artista obcecado por um de seus murais provoca o seu novo
assistente: “O que você vê?”
O processo criativo, a formação e as
angústias de um artista da arte moderna – o russo Mark Rothko (1903-1970) - são
o cerne da cena teatral apresentada pelo diretor Jorge Takla, a partir do texto
“Vermelho” (Red) de John Logan, laureado com cinco prêmios Tony, sendo um deles o de
melhor espetáculo.
O dramaturgo e roteirista
norte-americano John Logan tem participado também de inúmeros projetos cinematográficos
de sucesso: “Gladiador” de Ridley
Scott, “O aviador” e “A invenção de
Hugo Cabret” de Martin Scorsese, “Sweeney
Todd: o barbeiro demoníaco da rua Fleet”
de Tim Burton e “007 – Operação Skfall”
de Sam Mendes. Com a peça de teatro sobre Rothko, Logan diz: “Com Red eu estava interessado na passagem de uma
geração e no relacionamento entre pais e filhos.”
Rothko integra um grupo de artistas
que constituiu o Expressionismo Abstrato (Escola de Nova Iorque), arte de
ruptura dos padrões vigentes que se caracterizava pelo processo, pelos
sentimentos produzidos no próprio ato da pintura. O artista instituiu a pintura
de “campo de cor” onde a configuração da obra apresentava a força emocional da
cor pura.
A montagem em seu processo de criação
de um texto teatral construído de forma clássica, que prima pelo próprio texto
(discurso), pela palavra tornada potência dramatúrgica, convida o espectador ao
exercício do olhar, a refletir sobre os dilemas da subjetividade do observador em
um contexto histórico e estético no qual a arte está sob a égide da sociedade
de consumo. Muitas das vezes, o objeto artístico é apenas um elemento de um espetáculo
vazio, desprovido de significado social. Ficamos na espera de uma arte que possa
ocupar o lugar de agente de conhecimento e superação do passado. As angústias
de um artista de ego colossal diante de seu tempo se deparam com o dilema de
que “um dia o preto vai engolir o vermelho”.
O rigor e a plasticidade do
espetáculo de Takla se associam à intensidade das palavras do texto teatral de
Logan, das formas e cores pictóricas de Rothko e de suas ideias e afetos que o
tornam um artista constrangido com a lógica de uma sociedade de espetáculo
voraz. A performance pictórica dos
personagens Rothko e Ken (Bruno
Fagundes) constroem um quadro dramático onde cada movimento cênico
constitui uma dinâmica na qual “cada pincelada (movimento) é parte de uma
tragédia”. Uma tragédia onde contemplação, razão e emoção irão deflagrar uma
tensão criadora. As entradas e as saídas de cena no atelier de Rothko, um velho
galpão na 222 Bowery, Nova Iorque, são momentos de intensa carga dramática apresentando-se
como uma partitura de tensões de ideias e de formas pictóricas. Os objetos
cênicos (projeto de design de cenário
concebido por Takla) se movimentam como se fossem pinceladas de um quadro a
procura de uma forma que possa provocar o espectador. O projeto de design de luz criado por Ney Bonfante
pontua a palheta de cores das telas e do cenário através de contrastes que criam
um atrito no olhar.
A peça retrata o período de 1958-59 (anos
da fase denominada “anos do classicismo” na trajetória do artista) no qual
Rothko trabalha na produção dos murais do restaurante Four Seasons, em Nova
Iorque, no lendário Edifício Seagram (1958), um marco da arquitetura moderna
projetado por Mies van der Rohe e Philip Johnson. A encomenda milionária
torna-se o centro nevrálgico das inquietações do artista que oscila entre a
cooptação a um projeto de mercado, onde os seus murais seriam objetos apenas de
decoração e de luxúria, e a manutenção de uma presença romântica fidedigna ao
seu ideário estético e político. Rothko fazia questão de ter controle absoluto
tanto do lugar de suas obras quanto de quem as via. O observador precisava,
segundo ele, se relacionar tanto de forma física quanto emocional com a obra de
arte. No restaurante as pinturas seriam disputadas por movimentos, falas, goles,
mastigações e sons inoportunos. O artista deveria ser autônomo como a própria arte
(pintura): “deixa a pintura fazer o seu trabalho”, dizia ele.
A relação de mestre (Rothko) e
discípulo/assistente (Ken) - ou pai e filho -, mostram a importância do embate
entre gerações, talentos e experiências de vida no reposicionamento diante de
situações que comprometem a mente obcecada do artista. Rothko desiste da
encomenda e devolve o dinheiro a partir de um processo de constantes questionamentos
e, por fim, sob aplausos por parte de Ken. “Nada deve se interpor entre a minha
pintura e o observador” pensava o artista. O preto não engoliu o vermelho, mas
Rothko ficou mais pobre.
O espectador acompanha cada cena diante
da técnica teatral empreendida para levá-lo a um lugar de possibilidades
infinitas do olhar, da extensa gama de vermelhos vistos e ainda não vistos. O
ritmo cênico pontuado por um discurso pertinente à cena contemporânea (talvez
de um romantismo fora de época ou nunca existente diante de um mercado de arte
selvagem) e o rigor plástico fazem do espectador um aliado do drama vivido pelo
artista, pelos artistas imbuídos por um ideal. A experiência de uma geração, um
momento artístico sob uma outra lógica, é explicitado na cena final na qual
Rothko fala para Ken: “Quando eu tinha a sua idade, arte era uma coisa
solitária: sem galerias, sem coleções, sem críticos, sem dinheiro. Nós não
tínhamos mentores. Nós não tínhamos pais. Nós estávamos sozinhos. Mas era um
grande tempo, porque nós não tínhamos nada a perder e uma visão a ganhar”.
A metamorfose do olhar diante do
vermelho percorre mais do que as quatro estações de Vivaldi. Um olhar atento balbucia,
mas não tarda a percorrer os caminhos do infinito diante dos campos de cor. O
coração sente o que um olhar entregue conseguiu conquistar a partir de embates estéticos
e éticos de um artista em processo de insurreição.
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